terça-feira, 28 de novembro de 2006

ti nó ni, ti nó ni


Começou tudo por causa de um escorrega que é já ali e depois só mais uns barcos adormecidos no escurinho mesmo aqui ao pé e é só mais um bocadinho que é tarde, mais que horas do ó-ó... Acabou ao colo de um senho bombeio, maravilhado com os casacos vermelhos, a ambulância por dentro, as mangueiras, a água (tão fria!) dentro dos enormes camiões e as luzes. Praticamente ignorou o presépio ainda em construção e embeveceu-se com os capacetes, a mota (mau!) e a betoneira. O rapaz, ainda novo, provavelmente ainda sem filhos, atrapalhou-se com o chorrilho dos E é poquê? e Pa que sevir ito? e com os dezasseis kilos excitados e remexidos escadas abaixo e acima. Eu espantei-me (como me espanto sempre) com a total ausência de timidez e com a facilidade com que se agarra a mãos e colos desconhecidos.
A caminho de casa, tonto de sono mas sem birras, anunciou decidido que quando fôr grande quer ser bombeiro. E Pai Natal, claro, decisão tomada e mantida há um ano.
No dia a seguir desenhou o senhor bombeiro Nuno, com cabelinhos e capacete amarelo e agora temos que ir lá oferecê-lo ao responsável pelas escolhas presentes do futuro.

sexta-feira, 24 de novembro de 2006

dias de chuva


De manhã enchemos o céu da nossa rua de bolhas de sabão.
À noite, feliz com a chuva e o muito vento, ansioso pelos relâmpados e tovões, desenhou-nos tubaões e ondas nas janelas da varanda.

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

a Boba


A Doris é uma lindeza. Desde cachorrinha que as pessoas na rua páram e reparam nela e lhe querem fazer festinhas e miminhos e perguntam o nome e a raça e se é mansinha e assim e tal e tal e tal... Ora a Doris é tão pródiga em lindezas quanto parca em ideias. Pronto, não é esperta. Aquela esperteza dos cães de que tanta gente fala (ir buscar coisas, salvar crianças, guiar cegos, encontrar objectos...) ela não a tem. Quando lhe dizemos deita, ela senta-se. Quando lhe dizemos dá a pata, ela olha para nós. Quando lhe dizemos vai para o quintal, ela vai para a sala. Quando chamamos a gata, ela aparece. Quando chamamos o Simão, ela aparece. Quando quer ir à rua, senta-se e olha para nós. Não ao pé da porta nem ao pé da trela. Ao pé de nós, onde estivermos. Quando tem fome, senta-se e olha para nós. Não ao pé do prato da comida nem ao pé do saco da comida nem sequer na cozinha se lá não estivermos. Ao pé de nós, onde estivermos. E também é pródiga em bobalhices. Corre para o meio da estrada quando vêm carros a passar. Come tudo o que encontra na rua, sorrateiramente, para depois chegar a casa e vomitar, não no quintal nem no chão da cozinha, mas nos tapetes da sala. Pensa que aqueles cães minúsculos e encaracolados que lhe rosnam e tentam morder estão a brincar com ela e dá saltos e pinotes e cabriolices que quase os atropelam e esmagam (sim, que ela é enorme. E pesada!). Foge a ganir, de rabo entre as pernas e aterrorizada, de cães do mesmo tamanho ou maiores que lhe abanam o rabo e só a querem cheirar. Tenta brincar com os gatos da rua que lhe fazem ffuuus furiosos de pêlo em riste. Se ficar num quarto ou na sala e a porta por acaso se fechar não ladra para nos chamar nem gane nem empurra a porta com a pata; deita-se a dormir e espera que alguém se lembre de a procurar - mesmo que isso leve horas ou dias a acontecer. Deita-se no meio da porta da cozinha ou no meio da porta da sala ou no meio de outra porta qualquer, de preferência de uma divisão onde se vá muito, obrigando-nos a passar por cima dela de cada vez que entramos e saímos. Não vem quando a chamamos. Chegámos a pensar que ouvia mal. Não ouve mal. Se dissermos baixinho pão ou arroz ela aparece logo. Chegámos a pensar que via mal ao longe. É provável. Isso ou ser distraída ou fingir que não nos vê, tal como finge que não nos ouve. Por fim deixou de beber água e apanhou uma infecção urinária, obrigando-nos a idas e idas à veterinária, comprimidos escondidos dentro do pão, copinhos para apanhar o xixi, ecografias de barriga para o ar em cima da marquesa, suspeitas de pedras nos rins e dieta controlada (isto quer dizer uma ração caríssima!). Agora, que está com o cio, senta-se antes de de ir e vir da rua, tornando a tarefa de tirar e pôr as cuequinhas uma questão mais de força do que de jeito. Por tudo isto deixou de ser Doris e passou a ser Boba. A cadela Boba. Que só faz bobalhices.
O Simão, desde que começou a gatinhar, entornou-lhe vezes sem conta o prato da comida. Mexeu-lhe na comida enquanto ela comia. Chegou a comer uns biscoitos cor-de-laranja com um ar nada apetitoso. Entornou-lhe vezes sem conta a tijela da água. Puxou-lhe o rabo. Puxou-lhe o pêlo. Puxou-lhe as orelhas. Tentou enfiar-lhe dedos, lápis, chaves dentro dos olhos e da boca. Brincou com a trela dela, com os brinquedos dela, com os ossos de roer dela. Transformou-a em cavalo e galopou. Transformou-a em mosquito e bateu-lhe com o mata-moscas. Transformou-a em banco e sentou-se em cima dela. Transformou-a em formiga e deu-lhe sapatadas. Transformou-a em leão e perseguiu-a à volta da mesa da sala. Transformou-se em cão como ela e exigiu andar de trela a gatinhar, a cheirar portas, a comer e a ladrar. Deu-lhe pontapés e cabeçadas e gritou-lhe vezes sem conta. Ela às vezes ladra a ameaçá-lo - ou a chamar-nos - mas NUNCA lhe mordeu. Abana o rabo assim que o ouve acordar. E aprendeu a ronronar com a gata e a ressonar com o dono. Porque nos ama.
E nós compensámos a desilusão da esperteza com esta prenda tão especial e já não concebemos os dias sem estes pequenos incómodos bobos.

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

no parque infantil


Não gosta de andar de baloiço.
Gosta muito de andar de escorrega.

os porquês

"O que se esquece é como se nunca tivesse acontecido"
Uma amiga promovida a conhecida com o passar dos anos e o nascer do filho (coisa triste, estas amizades que diminuem...) falou-me dos blogs mais ou menos há um ano por causa do trabalho. Eu era quase analfabeta na net e sabia lá o que era um blog... Procurei e descobri os hand made. Procurei mais e descobri os filhos, as mães, as opiniões, os pais, os não casados, as músicas, os animais, os poemas... Ao princípio fiquei um bocadinho estupefacta, aumentei as desvantagens, atolei-me de dúvidas. Então e os depois? Então e o puto com quinze, dezanove, vinte e três anos, os amigos e as namoradas a lerem infantilismos e birras e xixis nas cuecas? E gente estranha a saber das nossas minhoquices? E, e, e mais e... Ultimamente aumentei as vantagens e atolei-me novamente de dúvidas, mas ao contrário. Então e o puto, novamente nos depois, a dizer-me a mãe do meu amigo fez-lhe um blog de quando ele era bébé... E de repente, no meio de tanta oscilação, começou a apetecer-me. O filho, as fotos do filho, as pequenas palavrinhas, a cadela, a gata, as coisas de todos os dias, aqui guardados e perdurados. Não apontei nada desde que ele nasceu. Não sei a data do primeiro sorriso, o primeiro corte de cabelo, o primeiro papá, o primeiro pastel de nata (e o que ele gosta de tanéis nata!). Levei na mala para a maternidade um caderno e lápis para escrever os primeiros dias de mãe e filho e, até agora, está em branco. Não tenho um diário de gravidez nem de bebé nem de menino. Quando encontro palavras e gestos apontados nas costas das fotos e desenhos dele surpreendo-me e aborreço-me com tudo o que esqueci e reafirmo tenho que começar a escrevê-lo! E nunca começo porque não tenho tempo e porque tenho que fazer o almoço e porque tenho que trabalhar e porque tenho que brincar com ele e porque... E ele vai crescendo e mudando e eu vou não tendo tempo... Por isso decidi que é agora. Mesmo que mais tarde ele não goste ou não queira ler, mesmo que me (e o e nos) exponha demasiado, mesmo que a casa fique por limpar, mesmo que me arrependa depois, tem que ser agora. Porque me apetece muito.

sábado, 18 de novembro de 2006

era uma vez...


De há uns tempos para cá (quinze dias? um mês? mais?) começou a contar-me estórias. Era uma vez um cocodilo viu um rioceronte. O cocodilo comeu o rioceronte. O rioceronte saíu pelo repuxo (ainda há tão pouco tempo dizia poxuxo!). Foi tomar banho. Os comilões vão mudando (tigre, leão, baleia, girafa...), o comido é quase sempre o rinoceronte, a acção é mais-ou-menos a mesma. Que me lembre é a primeira vez que conta estórias assim. Já há muito que se transforma nas personagens dos livros que lhe leio ou dos desenhos aminados que vê mas acho que contá-las realmente imaginadas por ele é uma estreia.
O cocodilo do nilo verde feioso (um dos brinquedos do momento) pedinchado numa loja não menos feiosa tem um buraquito por baixo da boca. Na banheira é um pipi por onde sai o xixi - logo, uma cocodila -, fora da banheira é o buraco do repuxo de água - logo, munto pacido à baleia.

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

a caixa

"Um dia um homem disse assim:
- Vou fazer uma caixa para pôr lá dentro as minhas coisas. Quero ter todas as minhas coisas dentro de uma caixa, porque assim ninguém mexe nelas.
Ora muito bem: e o que é que o homem tinha? Uma casa, um automóvel, muitos livros e discos, e uma cama, um sofá, uma mesa e umas cadeiras... E para tudo isto ele decidira fazer uma grande, uma enorme caixa e meter lá dentro tudo: o automóvel, a casa, as cadeiras, etc., etc. Bem, tinha que começar a fazer a caixa. Comprou uma placas de madeira, um bocado maiores do que a casa (que era a coisa maior que ele tinha) e começou a tirar as medidas das placas, e a cortá-las para depois as juntar com cola e com uns pregos enormes, e assim construir a caixa. Andou nisto sete anos, tanto mais que só trabalhava aos fins-de-semana porque durante a semana tinha um emprego que não lhe deixava tempo livre para andar a fazer caixas. Cortou, pregou, despregou, colou, descolou, mediu, desmediu, e quanto mais a caixa crescia mais o homem ficava pequenino. Ainda por cima, durante esses sete anos, foi comprando mais coisas, de maneira que cada vez a caixa tinha que ser maior, para lá dentro caber tudo.
Finalmente, ficou pronta a caixa! Só faltava pôr as coisas lá dentro! O homem comprou então um guindaste muito grande e com o guindaste arrancou a sua casa à terra e pô-la dentro da caixa. Depois, fez o mesmo com o automóvel e com os livros e os discos, a mesa, as cadeiras, a cama, o sofá, e com tudo o que entretanto tinha comprado. Depois de tudo lá metido, meteu-se ele também dentro da caixa, todo contente por o trabalho estar terminado. Mas depois pensou:
- Ainda está uma coisa minha fora da caixa: o guindaste! Como é que eu o vou trazer para dentro? Não posso transportá-lo com o guindaste, porque o guindaste já é o guindaste!...
De maneira que o homem pensou, pensou e resolveu abrir uma grande porta num dos lados da caixa e por essa porta puxar para dentro o guindaste. Claro que isso lhe custou bastante, mas ao fim de muitos trabalhos lá conseguiu puxar para dentro o guindaste, que por sinal ocupava um espaço enorme e não servia para nada, visto que já estava tudo dentro da caixa! E então o homem pensou: Bom, esta porta que eu abri agora na caixa até me dá jeito, porque quando quiser sair para o meu emprego com o carro saio por aqui.
Pronto. O homem sentou-se todo satisfeito, mas depois reparou: Está escuro aqui dentro, não se vê quase nada. E se eu fizesse uma janela na caixa? É isso, vou abrir duas janelas mesmo aqui por cima da porta.
E assim fez. Assim é melhor - pensou, e adormeceu contente.
No dia seguinte saiu com o carro pela porta que tinha feito na caixa, foi para o emprego e voltou à tarde, todo ansioso por ver a sua caixa. Era estranho porque, vista de longe, a caixa parecia mesmo uma casa. E o homem pensou: Mas, afinal... esta caixa é igual à minha casa! Tem janelas e uma porta como tem a minha casa, e tem lá dentro as minhas coisas, como tinha a minha casa. E ainda por cima, tenho agora uma coisa que ainda não está dentro de uma caixa: é a minha caixa! A minha caixa! A minha caixa ainda não está dentro de uma caixa!
E o homem pôs-se a pensar que se queria que todas as suas coisas estivessem dentro de uma caixa, então tinha que fazer uma caixa para a caixa, e quantas mais caixas fizesse mais caixas tinha que fazer. Ora bolas, tanto trabalho para nada! - pensou o homem. - Vou mas é desfazer a caixa.
E assim fez. Partiu a caixa aos bocadinhos, e ficou assim com lenha suficiente para o resto da sua vida. Todas as noites punha um bocadinho da caixa no fogão da sala, deitava-lhe fogo e, todo contente, ficava a olhar para o lume e para os restos da caixa que não tinha servido para nada, a não ser para se aquecer."
A Caixa, in Contos de Sérgio Godinho
Quando o meu filho era um menino decidi fazer este blog-caixa-casa, para poder pôr cá dentro os nossos dias de agora e ficar com lenha suficiente para nos aquecer os dias da frente.