quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

a primeira noite

Passado um bocado entranhei o silêncio, desamparei a caixa e comecei a procurá-lo. Acompanham-me seis anos de alvoroços, o sossego tornou-se um parente distante pouco assíduo nas visitas e nas permanências. Ou é o maior a cantarolar e a barulhar as lutas dos Bionicles e as viagens dos tractores e autocarros e a perguntar Mãe, porque é que as folhas das coníferas não caem?, Mãe, o que é a alma?, Mãe, os quivis têm asas ou não?, Mãe, adoro-te., ou é o menor a guinchar pedidos de bolachas e de pão e de tudo o que nos fareja nos pratos e a chorar por colos e mimos e a bater com os brinquedos no chão da sala ao mesmo tempo que rasteja tentativas de gatinhar até à cadela. Que eu nunca imaginei que na maternidade uma das saudades maiores fosse para os silêncios. Às vezes, os dois já adormecidos depois da maratona final dos banhos, jantares, leites, dentes, estórias, beijinhos e embalos, interrompo as azáfamas apressadas do lavar a loiça e arrumar e ligar a máquina e estender a roupa e adiantar o jantar de amanhã para me sentar imóvel no sofá só a ouvir a ausência do ruído. O conforto da ausência do ruído. Por isso, quando entranhei a calma, desisti das tentativas de ordenar copos, pratos, taças e chávenas nos armários ainda pouco familiares e chamei-o Simão? Onde estás querido?. Que o pequeno dormia, desregulado e arreliado com as mudanças e o jantar desalinhado, mas o grande tinha passado as horas a pulular entre os caixotes, a desajudar, a perguntar É hoje que vamos cá dormir? e em reclamações Não consigo encontrar os meus lápis para desenhar. e Onde é que há comida?. Por isso comecei a procurá-lo. Calculei-o nos arrumos do sotão, esconderijo preferido quando vínhamos exasperar-nos com as demoras no soalho e nas pinturas e preparei-me para o Búúúúúú estrondoso (cá está, a falta do silêncio...) com que fingíamos sempre atemorizarmo-nos muito. Achei-o estendido no escuro do meu quarto mesmo debaixo da janela grande. Já viste que tens o céu aqui dentro do teu quarto, mãe? Espreitei lá para cima, para os pontinhos pequeninos a piscapiscar e para uma lua redonda e generosa a deixar-se esconder e descobrir por nuvens velozes. Ainda pensei nos copos em cima da bancada e nas portas escancaradas do armário mas deitei-me ao lado dele, na madeira empoeirada e manchada de branco. Devagarinho comecei a esquecer-me das caixas por chegar e por esvaziar, da irritação com a tinta no soalho antigo, do cimento na tijoleira lá de fora, do fogão preguiçoso e pouco cooperante, dos pedreiros molengões e desastrados, das poucas horas de sono para conseguir limpar duas casas e carregar tudo, do Eu detesto mudanças repetido de cinco em cinco minutos. Deitei-me ao lado dele, na madeira antiga e suja, debaixo daquele rectângulo de claridade e, acho que pela primeira vez na vida, senti-me em casa.