sábado, 1 de outubro de 2011

princípios

O que resta é sempre o princípio feliz de alguma coisa. Cruzei-me com a frase da Agustina sobre os fins logo de manhãzinha e levei o resto do dia a rememorá-la devagarinho. Princípio feliz de alguma coisa. Princípio. Feliz.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

frase do dia

Simão, no carro, a caminho da praia. Eu antes pensava que o Joaquim ia ser desarrumador de carros. Não é desarrumador, é arrumador. Não, desarrumador. Porque ele desarrumava sempre tudo.

sábado, 27 de agosto de 2011

mudança

Mude, mas comece devagar,
porque a direção é mais importante que a
velocidade.
Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa.
Mais tarde mude de mesa.
Quando sair procure andar pelo outro lado da rua.
Depois mude de caminho, ande por outras ruas,
calmamente, observando com
atenção os lugares por onde você passa.
Tome outros ônibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas.
Dê os seus sapatos velhos.
Procure andar descalço alguns dias.
Tire uma tarde inteira para passear livremente na praia
ou no parque e ouvir o canto dos passarinhos.
Veja o mundo de outras perspetivas.
Abra e feche as gavetas e portas com a mão esquerda.
Durma no outro lado da cama...
Depois procure dormir em outras camas.
Assista a outros programas de tv,
compre outros jornais, leia outros livros.
Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida.
Ame a novidade.
Durma mais tarde.
Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos, escolha comidas diferentes,
novos temperos, novas cores, novas delícias.
Tente o novo todo o dia.
O novo lado, o novo método, o novo sabor,
o novo jeito, o novo prazer, o novo amor.
A nova vida.
Tente.
Busque novos amigos.
Tente novos amores.
Faça novas relações.
Almoce em outros locais,
vá a outros restaurantes,
tome outro tipo de bebida,
compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo,
jante mais tarde ou vice-versa.
Escolha outro mercado, outra marca de sabonete,
outro creme dental.
Tome banho em outros horários.
Use canetas de outras cores.
Vá passear em outros lugares.
Ame muito,
cada vez mais,
de modos diferentes.
Troque de bolsa, de carteira, de malas,
troque de carro, compre novos óculos,
escreva outras poesias.
Jogue os velhos relógios,
quebre delicadamente
esses horrorosos despertadores.
Abra conta em outro banco.
Vá a outros cinemas, outros cabeleireiros,
outros teatros, visite novos museus.
Mude.
Lembre-se que a vida é uma só.
E pense seriamente em arrumar um outro emprego,
uma nova ocupação, um trabalho mais light, mais prazeroso,
mais digno, mais humano.
Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as.
Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa,
longa, se possível sem destino.
Experimente coisas novas.
Troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente, outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores
e coisas piores do que as já
conhecidas, mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança,
o movimento, o dinamismo, a energia.
Só o que está morto não muda!

Mude, Edson Marques

mulher-palhaço


Não me custava nada ter umas imagens da Marta Rodilla aqui a colorirem-me as paredes.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

resiliência

Devia ser pelos fins de setembro. Ou meios de outubro. Não sei. Não me consigo precisar nas datas, que na infância os tempos medem-se sem nomes de meses. Dias de escola e dias de não fazer nada. Dias de brincar na rua e dias de ver a chuva pelas janelas. Dias de gelados e dias de leite com chocolate a aquecer na língua. Mas havia uma luz dourada nas tardes, as solas dos sapatos entretinham-se a amachucar as folhas dos plátanos no caminho para a escola e as manhãs e os entardeceres já reivindicavam mangas compridas. Era, por isso, no outono. De certeza.

Tudo seria mais fácil se eu retornasse sem preocupações com os relatos dos acontecidos. Destronava os dois miúdos mais pequenos ali de mensagem de boas-vindas como se não estivessem lá a dormir desde o último outubro, amanhava umas desculpas bem-humoradas com as poucas horas, os muitos sonos, os excessos de roupa e as abundâncias de sopas e passava a telegramar-nos aqui a vidinha com umas ortografias levezinhas. Uma ou duas frases por dia, umas fotografias às sextas, ausências aos sábados e domingos numa espécie de quase compromisso laboral fácil de cumprir. O miúdo mais pequeno já tem os dentes de cima. Ela já trauteia uns passinhos tímidos mas decididos ancorada ao sofá. O mais crescido finalmente começou a ler. O médio acredita-se alpinista e trepa mesas, cadeiras, prateleiras e o beliche do irmão. Dissimulava as curvas, ocultava os solavancos, seguia em linha recta. Simples. Assético. Perfeito. Cor-de-rosa. Como se quer nos blogues.

Primeiro nasciam os cartazes nos postes da luz. Dois homens quase sempre barrigudos, quase sempre de bigode, quase sempre com pouco cabelo esfalfavam-se a agarrar às luzes da terrinha palhaços sorridentes. Falta muito, ainda falta muito, de certeza que ainda falta muito, iludia-me eu. Mas um ou dois dias depois aparecia a carrinha. Camuflada de fotografias e grandes letras vermelhas. Senhores e senhoras, meninos e meninas, roufenhava ela à volta do jardim, Todos os dias às vinte e uma, a carrosselar a rotunda da estação, Palhaços e equilibristas, por cima da ponte a atemorizar os peixes, Mágicos e trapezistas, a competir com a sirene do quartel dos bombeiros, Araras do México e tigres da Birmânia, a estacionar ao pé do mercado do peixe. Onde será a Birmânia?, perguntava-me eu, nariz e preocupações enfiadas no atlas, E como é que os tigres vêm da Birmânia, tão longe, para cá? De avião? Será que os tigres gostam de andar de avião? E não terão saudades do país deles? O incrível circo chegou à cidade, meninos e meninas, senhores e senhoras, a desacelerar-se muitas vezes na avenida da escola.

Ou então decidia que já não queria mais a caixa. Fazia assim uma espécie de escolha múltipla: a, termino-o como está, até parece um final feliz assim com os dois miúdos recém-nascidos como última imagem, não explico nada, tiro o mail ali do lado direito, esfumo-nos; bê, arremato uma despedida simpática, adeus, foi bom enquanto durou, até sempre, têm ali o mail, escrevam-me se quiserem, prometo responder; cê, carrego no delete, assassino este url. Pim, pam, pum, cada bola mata um, cê, fim. Vitória, vitória, acabou-se a caixa.

Se se portarem bem amanhã vamos ao circo, a voz da minha mãe na sala mesmo antes da correção dos ditados a negociar a desrotina, os miúdos todos contentes, cavalos, macacos, luzes e narizes vermelhos em vez de subtrações, adjetivos, pretéritos-mais-que-perfeitos e capitais de distrito. E eu a falar alto e virada para trás e a responder muitos Não sei aos Quanto é seiscentos e quarenta e cinco mais trezentos e noventa e sete? e aos Diz o nome de dois animais invertebrados., na esperança de que as faltas de esperteza e as incorreções me invalidassem o passeio. Eu não gosto muito de ir ao circo..., ainda encabulava timidamente no fim do dia. Que parvoíce, todos os meninos gostam de ir ao circo.

Ou então mudava de http. Roubava o título dos tangerinas, que nos está tão à medida agora, camuflava-nos debaixo de iniciais, o ésse, a jóta, , fabricava-me um pseudónimo e uma caixa de correio novos. Nos primeiros textos expunha as entranhas, mostrava as digestões mal-feitas, arranjava motivos, foi o pouco tempo, foram os muitos miúdos, foi a família. Resolvia-nos os problemas com a culpa dos outros, fingia que é possível esquecer o passado e começar de novo. Consolava-me.

Sentava-me no meio do cheiro a serradura e da excitação dos outros miúdos já a prender as lágrimas. Não entendo esta miúda, nunca gosta das coisas que as outras crianças gostam, a minha mãe a desabafar as desilusões com as minhas tristezas incompreensíveis com a colega do lado. Se calhar é por isso que não nos entendemos até hoje, nunca chorámos pelas mesmas razões. Tudo me afligia logo desde o princípio. A tenda descorada por muitos sóis e caminhos sitiada por rulotes tristes, os animais a bocejarem tédios e vontades de se mexerem nas jaulas, os miúdos despidos de cabelos sujos a brincarem com a terra do campo da feira. Fechava os olhos, apertava as mãos com força, respirava muito para ver se o coração afrouxava, Quem me dera trovões barulhentos e relâmpagos fulminantes, quem me dera que amputassem a eletricidade, que aluíssem a tenda, quem me dera que inquietassem os bichos, que os ajudassem a fugir para o México e para a Birmânia, quem me dera não estar aqui.

Ou então tirava um curso de escrita criativa como agora está na moda. Se calhar até já há por correspondência ou na net. Aprendia regras para desembaraçar este novelo narrativo, que tudo aqui tem nomes e recomendações de como fazer. Talvez arriscasse um poema. Fica sempre bem, um poema.

É que foi mais-ou-menos a mesma coisa. Primeiro apareceram os cartazes. Andava distraída, não os entranhei. Depois a voz espantou-me os silêncios e megafonou-se-me pela casa. Chegou o incrííííível espetáculo para toda a família. Descri dos sons, inventei-me alucinações. Até que a tenda se me insuflou no meio da sala, sufocando os livros e os brinquedos dos miúdos, e o apresentador, de cartola, bigodes retorcidos e lantejoulas gastas, me anunciou. A mim. E agora, senhores e senhoras, um número dificílimo. E eu a tentar em vão contorcer os pés num ésse para ampararem uma bola em frente da boca. E agora, excelentíssimo público, um momento mágico. E eu a não conseguir fazer crescer coelhos e flores de uma cartola. E agora, meninos e meninas , vamos todos rir. E eu a arriscar umas piadas infrutíferas e uns esguichos débeis da flor da lapela com as lágrimas a esborratarem a boca feliz. E agora um número verdadeiramente perigoso. E o leão a rosnar-me fomes e desobediências aos De pé e aos Salta. E agora, caro público, um momento inesquecível. E eu a desequilibrar-me do monociclo e os pratos a desequilibrarem-se dos arames e a estrepitarem cacos no chão. E agora, finalmente, senhores e senhoras, meninos e meninas, o grande momento da noite. Os tambores e os holofotes e o silêncio do público, um fio esticado sem amparo de rede lá em baixo e eu a pensar Não consigo atravessar isto, é agora, acabou-se.

Os holofotes apagaram-se, o público saiu sem palmas, o apresentador retorceu perplexo as pontas do bigode Isto nunca se tinha visto..., e despediu-me, a tenda desmoronou-se, os homens barrigudos recolheram carrancudos os cartazes. E eu fiquei ali deitada com os pedaços de mim todos dispersos pela serradura e pelo campo da feira, sem vontade de voltar nem para os dias nem para os miúdos nem para mim nem para esta caixa. Morri, não consigo levantar-me, não quero continuar. Até que o miúdo crescido, que agora (me) lê, retrocedeu no arquivo e pôs-se a rir e a mostrar-se aos irmãos, Oh, este sou eu? Tão pequeno! E eu dizia isto? Que engraçado, não me lembrava! E o Joaquim aqui estava tão bebezinho e gordinho! Oh mãe, tu tens que escrever aqui no blogue senão nós quando formos crescidos não vamos saber como éramos em pequenos.

Por isso alcancei os meus bocados, desamolguei-os, aconcheguei-os com fita-cola e uhu, esperei pacientemente que se confundissem e começassem a trabalhar. Voltei primeiro para os miúdos, depois para os dias, agora para esta caixa e a seguir a ver se consigo o para mim. Que é o mais difícil.

Nunca mais vou ao circo.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Gil e Júlia

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

todo o tempo do mundo

É Eloisa sem agá, respondeu ela à enfermeira naquelas palavras com muito mais mel e calor do que as nossas. Quarenta e uma semanas, uma bebé dorminhoca e lá muito em cima, uma linha lisinha no sítio das contracções. E você, princesa?, perguntou a enfermeira para a outra cadeira, ataviada de soro e gemidos. Vinte e nove semanas, uma menina desassossegada e apressada, uma linha a ziguezaguear prematuridades e riscos. Ficámos ali as três, com os riscos a encherem o papel e com o tum-tum-tum dos pequenos corações a assegurarem existências e saúdes. Nossa, você vai ter gémeos? Confirmei de cor, já sem pensar nas respostas. Nossa, mas aqueles dois meninos lá fora não são seus? Voltei a confirmar de cor. Nossa, mas o mais novinho é mesmo muito novinho ainda! Quanto tempo ele tem? Voltei a responder de cor. Nesta altura os espantos já deixaram há muito de ter originalidades ou discrepâncias.

Podes vir a qualquer hora
Cá estarei para te ouvir
O que tenho para fazer
Posso fazer a seguir

Eu não gosto de hospitais. Nem mesmo deste, onde as enfermeiras nos chamam princesas, falam com doçuras nas vozes e fazem festinhas nos braços. E há janelas grandes, muita luz e o azul do rio lá em baixo. Tenho esbanjado duas manhãs por semana (e às vezes ainda uns princípios de tardes) a caminhar corredores e escadas para me revezar entre as consultas, os cêtêgês, as ecografias, as marcações e as análises, que isto de ser gemelar e de se estar a prolongar encafua-me num estatuto de risco que desconheci nas outras duas. Pelo caminho cruzo-me com a pedopsiquiatria, a espera da oncologia, a morgue. Abro uma estreiteza na porta da urgência obstétrica e mostro ao miúdo crescido o corredor comprido e as muitas portas. Vês, foi aqui que o mano nasceu e é aqui que os manos vão nascer. Mãe, eu queria ver. Não podes, querido, os médicos não deixam. E não ias gostar. À primeira vez nascer parece assustador. Há dores e esforço e sangue. E muitos medos. Só quando lhe ganhamos distância e percebemos a naturalidade da coisa é que perdemos o medo. E penso que, apesar de tudo, é uma sorte estar aqui para princípios e não para fins.

Podes vir quando quiseres
Já fui onde tinha de ir
Resolvi os compromissos
Agora só te quero ouvir

As enfermeiras vão entrando e saindo, trocando as barrigas nos sensores, admirando-se com a sintonia perfeita dos dois corações gémeos, falando do almoço e dos filhos e dos colegas e dos turnos. A Eloísa sem agá vai-se embora com um desconsolado Ainda não é desta..., vem a Helena, muito novinha e tímida. Quantas semanas, princesa? Tem aqui umas contracções grandes, se calhar daqui a bocadinho já tem o seu bebé cá fora. Transformamo-nos nisto, em semanas de gestação e linhas de contracções. Eu sinto umas dores levezinhas e penso Até que enfim., e lembro-me dos três centímetros que a médica me avaliou. Vá lá, digo aos miúdos, hoje é um dia bom para nascer, nove do nove e uma chuva miudinha lá fora, sempre gostei destas capicuas e das chuvas de setembro, que se o ditado é válido para os casamentos também se pode aplicar aos nascimentos. Parto molhado, parto abençoado. Quando eu casei havia sol. E quando os dois miúdos maiores nasceram também. Se calhar está a fazer-nos falta na estória um dia de chuva. É o primeiro filho, Helena?, pergunta a enfermeira. E eu penso se os médicos e os enfermeiros e os auxiliares não sentirão a morte a coabitar com eles aqui dentro destas paredes. Se vêm todas as manhãs para o hospital como quem vai para um escritório ou para uma escola. Porque eu (pres)sinto-a. Nos lenços que tapam as ausências de cabelos nas esperas da oncologia, nas macas que se aceleram para as urgências, na placa que diz morgue numa porta igualzinha às outras todas. Será que a enfermeira que me ajeita o sensor na barriga a gracejar É ela, as meninas começam logo na barriga a fazer-se difíceis., e que diz à colega Vai, vai almoçar para a seguir poder ir eu., também sente este frio à espreita ou já se habituou e a morte rotinou-se tanto como uma análise e um teste à urina?

Houve um tempo em que julguei
Que o valor do que fazia
Era tal que se eu parasse
O mundo à volta ruía

A ecografia mostrou-os grandes, tão grandes para gémeos. Ele com dois quilos e oitocentas e mais umas graminhas, ela só com menos cem. Empuzzlados um no outro, arrumadinhos a rentabilizar os espacinhos todos. A médica a ver-se aflita para os destrinçar um do outro Mas onde é que estão as pernas desta rapariga? E onde é que ele enfiou a outra perna? Suspiro todos os dias pelo fim da barriga, que as trinta e sete semanas ultrapassaram em muito o esperado e se os quilos continuam a aumentar-se invalidam-me completamente as já poucas hipóteses de um parto natural. E eu, que consegui fazer nascer dois miúdos maiores que estes a resmungar Não quero oxitocina., Não quero episiotomia., Quero que ele mame já a seguir., Não quero que mo levem., aborreço-me muito com esta cesariana a acenar-me no fim do caminho. Peço-lhes por isso muitas vezes para nascerem. Vá queridos, nasçam, chegou a hora, há tanta gente à vossa espera...

Agora em tudo o que faço
O tempo é tão relativo
Podes vir por um abraço
Podes vir sem ter motivo
Tens em mim o teu espaço

A enfermeira minimiza o som dos corações Isto nem se consegue pensar, parecem uns tambores., e liga um rádio pequenino, um bocadinho roufenho. E de repente começa a música. Que eu já a tinha ouvido por aí, claro, que é muito conhecida. Não o gosto nem desgosto, está naquele campo morno da indiferença. Mas de repente as palavras fazem tanto, tanto sentido. Que os miúdos maiores têm músicas só deles. Não são as músicas de que mais gosto ou as que escolhi para eles. Foram as que se oportunaram na gravidez ou no parto e ficaram as músicas deles. E estranhamente encaixam-se-lhes nos feitios e provavelmente nos destinos. E tenho pensado muitas vezes nestes meses Estes miúdos não têm música nenhuma. À espera que alguma aparecesse. Suspirei de alívio. É esta. É que é mesmo esta. Pronto, agora podem nascer.

Todo o tempo do mundo
para ti tenho todo o tempo do mundo
Todo o tempo do mundo

(Para além das óbvias ausências de tempos corroí-me de indecisões sobre o transcrever ou não para aqui estas palavras que rascunhei na última manhã que gastei no hospital nas esperas da consulta e dos resultados das análises e do cêtêgê. Desagrada-me falcatruar as datas e isto dos blogues é mesmo assim, o que não se regista no momento passa a validade e azeda. Mas depois achei que, ao contrário de muitas outras palavras que têm viajado do caderninho de capa castanha para o caixote do papel, estas eu gostava muito de deixar aqui para os meus filhos mais pequenos. Portanto, cá estão. Desacertadas nas cronologias mas acertadas com os sentimentos.
Os miúdos nasceram no dia a seguir.)

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

errata

As longilíneas das sombras diminuem-lhe a grandeza e a saliência, que parece apenas um normal fim de tempo quase a transformar-se em pessoa. Ao vivo, sem o favorecimento da esguiez, é assustadoramente enorme. Eu própria, habituada a espelhá-la enquanto me visto, horrorizei-me há dias quando me desreconheci nos pixéis da máquina conjugal. De repente, sem darmos por isso, ascendeu a protagonista de um espectáculo em que não nos imaginávamos a participar. Na rua eu fui exonerada de pessoa e nós todos demitidos de família de dois adultos com duas crianças. Sózinha ou em conjunto, resumimo-nos à barriga. Desconhecidos olham, apontam, voltam a olhar, cotovelam, sussurram audivelmente Olha aquela grávida!, Que grande barriga!, voltam a olhar, sorriem, espantam-se, horrorizam-se, comentam. Na praia, com o biquíni e a ausência de vestido a desnudarem a verdadeira amplitude da protuberância, é onde as reacções mais se hiperbolizam. Alguns chegam a afoitar-se em questionários Isso deve estar mesmo quase, não?, Isso era para ontem?, São dois ou três que tem aí dentro?. Eu bem faço por insignificantar-me, mas não serve de nada. Lá vamos esclarecendo que Sim, são dois e estão crescidos e com mais semanas do que o esperado, um bocado enfastiados de tanto avultamento enquanto o miúdo grande, que antes era o primeiro a esclarecer quantidades e sexos e nomes, resmunga Bolas, quando é que eles nascem para isto acabar? É só a barriga, a barriga, a barriga, já ninguém repara em mim nem no Joaquim... Vou-o sossegando com uns Está mesmo quase, filho, tens que ter só mais um bocadinho de paciência., e ocultando o pressentimento de que isto é só a apresentação de um filme que prevejo abundante e maçador. Está quase, filho, que eu também já estou farta...

terça-feira, 31 de agosto de 2010

summertime 15

À sombra.

summertime 14

À tarde espraia bichos campestres perto das ondas.

summertime 13

De manhã lapisa bichos marinhos nos versos das A4s já desprestimosas.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

esperas

A mesma médica que há dezoito ou dezanove meses me prescrevia caminhadas para convencer a descer um bebé que insistia em alojar-se-me encostadinho ao coração desta vez recomendou-me descansos Porque os gémeos nascem quase sempre antes e o mais certo é nem chegarem a setembro. Isto acrescentado às muitas mães que afirmam não ter conseguido evitar o primeiro dia nas trinta e duas ou trinta e três ou trinta e quatro semanas, a uma barriga pouco crescida em quilos mas muito aumentada em centímetros e a uma ecografia que os mostrou com os mesmos pesos e comprimentos de um bebé que se encasulasse sózinho fez-me afirmar aos amigos Isto de certeza que não passa do meio de agosto. O que até me desconsolou um bocadinho, que os calores, luzes e energias do oito tornam-no o que mais desgosto dos doze e não sei se o fogo dos leões se me encaixava bem nas águas dos peixes. Por isso agora vou respondendo uns Não, ainda nada., espantados aos crescentes mails e telefonemas e mensagens, admirada com a ausência de contracções e de vontades de quererem nascer. Ontem entrei nas trinta e seis semanas e depois de passar tantos meses inquietada com prematuridades e incubadoras sinto-me cansada dos já quatro quilos e tal de gente, dos pés inchados, dos formigueiros nas mãos ao acordar, das dificuldades nas locomoções e nos pegares ao colo no meu (por enquanto único) bebé e acho que estes miúdos cá de dentro já podiam ir dando sinais de querer vir cá para fora...

domingo, 29 de agosto de 2010

família numerosa

O pai diz que se isto de ter que chamar quatro nomes se balburdiar desmedidamente numeramos os miúdos em crescente do maior para o menor: o um, o dois, o três e a quatro. Eu, que já desnomeio muitas vezes só este par, não me importo nada de ter filhalgarismos desde que isso me poupe tempos e confusões.

summertime 12

O pequeno conquista desvergonhadamente as construções deixadas por outros para os jantares das marés.

sábado, 28 de agosto de 2010

summertime 11

Uns dias depois de desencobrir que estava grávida do pequeno Joaquim o meu filho que na altura era único desencovou das areias das férias um coração que ainda guardo junto com os dois riscos cor-de-rosa da confirmação. Agora que estou quase a conhecer estes dois miúdos o meu filho que diz que já não se lembra de como era ser único esbarrou nas mesmas areias com mais um coração. Só pode ser um bom sinal.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

silent land

E depois, alinhavadas aos sonhos, chegaram-me as memórias dos silêncios da minha casa de menina. Que estava sempre limpa, arrumada, estática, vazia, silenciosa. Tão silenciosa. Não havia músicas nem cantos nem diálogos nem barulhos nem campainhas a anunciar visitas nem telefonemas com vozes de amigos nem alegrias. Acho que nem havia os irritantes zzzzzzs das moscas, que nem as moscas gostavam de voar numa morada tão triste e monótona. E lembrei-me que pensava Eu gostava era de ter muitos irmãos, Eu gostava era de ter uma família grande, Eu gostava era de ter a casa cheia de risos e barulhos e confusões e desarrumações. Parece que afinal o desejo já existia. Eu é que me tinha esquecido dele...

dreamland

As tranquilidades e os contentamentos demoraram a domiciliar-se. Depois da descoberta ainda levei umas (acho que muitas) semanas encalhada nas previsões das dificuldades e dos cansaços. Nesses primórdios, paralelos às desconsiderações e aos espantos, indignavam-me sobretudo os Ah, isso era mesmo o meu sonho, eu queria tanto ter gémeos! E assim um casalinho, que é tão bonito, para ficar logo despachada!, que só não me arregalavam quando se vozeavam da falta de vivência das ainda não mães.

Mas depois começou a acontecer-me esta coisa singular. Enquanto eu soçobrava em queixas e desânimos, ele e ela começaram a alojar-se-me nos sonhos. Eu, desacostumada de sonhar com os outros dois miúdos enquanto moravam na barriga, que pelo menos ao acordar nunca me lembrava de os sonhar, comecei a sonhar com estes. Muitas, muitas vezes. Tranquilos e contentes, sempre. Umas vezes menorzinhos, acabadinhos de nascer, ainda na sala de partos e já a sorrir, e as parteiras encantadas Eu nunca vi uma criança a sorrir assim que nasce, vão ser uns bebés muito felizes. Outras vezes maiorzinhos, a gatinhar, no carrinho, sentados à mesa a comer, a brincar no chão com os irmãos. E, ao acordar, depois de os ver, sinto-me sempre estranhamente acalmada. Sem receios. Satisfeita. Por isso, e uma vez que não posso deixar aqui para a posteridade que estes filhos em duplicado vêm preencher um acalento antigo (o que era bom, que eles depois liam isto e ficavam todos contentes, Ainda nós não éramos nada e já a mãe suspirava por nós., que com certeza deve ser óptimo uma pessoa sentir-se desejada ainda antes de existir), posso escrever que agora o que eu quero mesmo fazer, nestes próximos anos, é dar muito colo e mimos e beijinhos. Ver os primeiros passos, ouvir os primeiros balbucios e cheirá-los muitas vezes. Porque, e aqui o lugar-comum é mesmo verdade, eles crescem muito depressa. E depois logo tenho tempo para as outras coisas todas que planeio acontecer. E embora antes não fossem um apetite agora são muito bem-vindos.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

summertime 10

Sempre que as marés decrescem despendemos muitos passos e minutos a procurar achados.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

summertime 9

E com este peixe.

summertime 8

Quando os decibéis começam a atingir níveis nocivos ao normal funcionamento dos pensamentos sossego-os aos dois com estas minhocas.