terça-feira, 27 de março de 2007

as primeiras pedaladas


Eu tinha que ser a melhor na escola, ter os cadernos em ordem, uma letra bonita, os trabalhos-de-casa todos feitos, a mais bem-comportada, a de saias sem pregas amarrotadas. As ameaças de ausências de amores maternos e paternos coroavam qualquer ínfima dificuldade. A mamã não gosta de ti se te portares mal ou se te sujares ou se deres erros no ditado ou se te enganares nas subtracções. E eu esforçava-me, esforçava-me muito, e tinha pesadelos com os açoites e as reguadas e sobretudo com uma mamã que não gostasse de mim. Mas nunca chegava. Os cemporcento nos testes, os cincos a quase tudo, o quarto tão arrumadinho, ficar sentada sossegadinha na cabeleireira em esperas de cortes e rolos, as não-birras, as sestas sem sono. Nunca chegava. Fosse lá o que fosse que esperavam de mim, eu não era suficientemente boa ou esforçada ou esperta ou outra coisa qualquer. Tive que crescer muito e que ter um filho para ouvir Ele já devia comer sózinho com faca e garfo e Tu com esta idade já andavas e Ele é um trapalhão a falar, não se percebe nada do que diz e para entender duas grandes verdades: a falha não era minha e maus pais dão péssimos avós.
É por isso que os meninos perfeitos me deixam em desconfianças. Os melhores na escola, que tocam piano na perfeição, que ganham os jogos de ténis, que ainda praticam equitação e natação e mais quatro ou cinco coisas, que nunca fazem uma birra, que comem tudo o que têm no prato, que têm a roupa sem uma nódoa, que não resmungam para cortar as unhas dos pés e que se deitam sempre a horas. Ou melhor, as mães destes meninos é que me deixam em desconfianças. Gostariam deles, se eles não fossem perfeitos? Se tivessem más notas, se batessem nos colegas, se entortassem os joelhos, se berrassem todos os dias na hora de lavar o cabelo? Gostam deles? Gostam de alguém?
Eu gosto muito do meu filho. É um amor grande, que às vezes até se me afigura excessivo, mais importante do que qualquer outra coisa. Mas eu não deixo que este amor me tolde a imparcialidade, que fique dependente de pódios. Não sei se ele será o primeiro nalguma coisa, concerteza será o último alguma vez e o do meio em muitas. O meu filho é imperfeito e eu não preciso que ele seja perfeito para o amar. Faz parte, acho eu, da minha tarefa de mãe, não lhe exigir perfeições para o ajudar nas dificuldades. Respeito-lhe os ritmos e aplaudo-lhe entusiasticamente todas as pequenas conquistas do crescimento mas sei que algumas chegam a desoras. E ele tem feitios que se não são defeitos até parecem. É demasiado impulsivo, com níveis de excitabilidade e de movimento que colidem com os funcionamentos das coisas, pessoas e eventos. E é demasiado teimoso. Tão teimoso que é, o meu menino! Uma falta de maleabilidade que me exaspera até aos gritos e me inquieta os futuros. Eu não góto dito, eu nunca na vida vou comê eta pocaria; Eu não quéo lavare o cabelo, ainda ontem lavei, não quéo; Eu não tenho vontade de fazer xixi, agora a seguir faço na falda; Eu não sei pedalar, eu sou pequenino, quando quescer logo pedalo. Andamos nestas percas de energias e paciências há que tempos, em insistências para comer laranjas e alface, em esfreganços de champôs acompanhados de gritos, em ameaças de tirar a fralda da noite, em explicações de facilidades Vês? Assim, um pé para baixo, outro para cima, Não, não, não quéo! Não consigo!
Hoje, enquanto eu estendia lençóis, pedalou pela primeira vez. Olha mamã, tou a pedalar! Já quesci! Já sou um menino guerande!
Vai ganhar uma bicicleta nos anos.

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