sexta-feira, 2 de março de 2007

hiperbólico

Quase em simultâneo passa das ternuras exageradas para as maldades também exageradas. Primeiro chama-lhes menina gatinha e querida bobinha, diz-me cinquenta vezes por dia eu góto tanto de ti e dá-me beijinhos ao outo (na boca), dá abacinhos gúúú (muito apertados e sonorizados com um gúúú) e beijinhos na bochechinha ao pai, fala com toda a gente na rua, incomoda miúdos e graúdos desconhecidos com mimos despropositados. E no segundo a seguir, sem qualquer motivo aparente, puxa o pêlo e o rabo da gata que está imóvel ao sol, dá pontapés à cadela que dorme sossegadíssima no tapete da sala, responde-me com maus modos, Túpida, túpida, enfurecido, levanta a mão para o pai Tu potáste muito mal, vou-te dar uma palmada, distribui cabeçadas e empurrões e dentadas em casa e nos escorregas, atira com portas e com brinquedos e com sapatos. Ralho, ralho muito, e falo, e explico, e apelo aos afectos que estavam lá no minuto anterior, e ponho de castigo e quando se me acabam os argumentos e as paciências ameaço e dou umas palmadas. Não gosto e não acho certo nem bom exemplo, mas dou. Que o exagero às vezes é tanto, mas tanto, tanto, tanto, que eu até já dei por mim a googlar bipolaridades e ciclotímias, desconfiada da sanidade total da criança. E também já me ouvi em desabafos como Se ele não fosse tão agressivo... e Mas porque é que este miúdo não é mais calmo?!? e Porque é que tens que exagerar tanto, filho?!. E culpo-me, culpo-me muito, por dizer e pensar estas coisas, que o desejo de mudança de um filho implica sempre rejeição e eu não quero rejeitá-lo nem que ele se sinta rejeitado... Mas este meu filho (às vezes) é tão difícil...
E sei, claro, que os miúdos são agressivos. Que muitos são. Passei a primária a vê-los pegar-se à pancada e levar pontos nos sangues das pedradas. Passei o ciclo a vê-los arrancar rabos a lagartixas e patas a carochas. De cada vez que escolho brinquedos incomoda-me a quantidade de espadas e pistolas e hiperheróis musculados que repõem a calma e o certo com murros e guerras e superpoderes mortíferos. E a violência pulula pelos imaginários infantis, desde madrastas que matam a pais que abandonam miúdos na floresta e a paus atirados a gatos. Sei isso tudo. Mas mesmo assim, racionalizando todas estas atenuantes, não consigo deixar de me sentir um bocadinho triste (e também culpada por esta tristeza) com os pequenos despropósitos diários...

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