domingo, 18 de fevereiro de 2007

as pequenas memórias


Aparecem-me às vezes, muito nubladas e confusas. Indeciso-me se serão mesmo minhas ou fabricadas a partir de estórias posteriores.

Vejo-me pequena, muito pequena, num corredor enorme (os corredores são sempre enormes quando somos pequenas), insegura ainda nos passos, agarrada à parede e a calcular as minhas sandálias brancas e o horrível plástico verde do chão demasiado longe. E há um animal aterrorizante, uma cabeça monstruosa de olhos azulados que sai da parede e que me impede de continuar. Quando muitos anos mais tarde a reencontrei, a detestável cabra embalsamada que me aterrorizou os primeiros passos trouxe-me a memória provavelmente mais antiga que tenho. Uma memória de medo.

E também me vejo, ainda muito pequena, a espreitar pelo postigo (era assim que lhe chamavam, será que ainda se usa dizer postigo?) da porta da primeira casa da minha vida. Há meninos felizes na rua, gritos e risos e bolas e corridas. Eles têm sol mas eu tenho frio a mais ou calor a mais ou chuva a mais ou febre a mais ou roupa limpa a mais. Nunca posso ir ter com eles. Uma voz (?) ordena-me o sofá e fecha-me com um estrondo a visão do pequeno paraíso. Uma memória de tristeza.

Também confusamente lembro-me escadas acima, em choro e medo, a caminho do sotão em fuga do homem das picas. Não me lembro de mais nada dessa primeira casa para além da cabra, do postigo e do sotão onde me escondia e brincava. E para onde fugia com medo das injecções. Uma memória de medo, novamente.

E depois há esta, clara, claríssima, a primeira sem névoas. Calculo que tenha sido aos quatro ou mesmo, mesmo perto de os fazer. Eu com uma coisa larga e branca vestida a entrar num elevador grande com dois adultos desconhecidos também de branco, a dizer adeus a alguém enquanto as portas se fechavam. E depois deitada e um senhor de óculos e a boca tapada de branco a perguntar-me algo, muito simpático, a que eu respondo quatro. A máscara preta, enorme, a aproximar-se da minha cara, a tapar-me a boca, um sabor estranho mas não desagradável. E a seguir o senhor, muito, muito simpático, pede-me para contar até quatro. No dois a língua embaraça-se-me e os ponteiros do relógio em frente começam a ziguezaguear e já não chego ao três. Lembro-me nitidamente desse adormecimento anestesiado e do pensamento frustrado Este senhor tão, tão simpático vai pensar que eu não sei contar mas eu sei, eu sei contar até quatro, eu sei, eu sei... Tenho a certeza que esta é mesmo minha, os adultos da minha infância não estavam lá para depois serem narradores. E não há medos nem tristezas nem proibições nem chuvas. É uma memória confortável, agradável, doce. Estranhamente confortável, agradável, doce. Segura. Se calhar por isso mesmo, porque os adultos da minha infância não estavam lá...

Pergunto-me muitas vezes qual será a primeira pequena memória do meu filho destes dias de pequeno.


(O título do post é o do último livro do José Saramago.)

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