quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

dias luminosos

Uma das coisas boas da casa cor-de-rosa é a maneira como, logo às oito da manhã, o sol nos começa a habitar as assoalhadas todas e a enxotar os desconsolos e as preguiças das noites.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

dias descoloridos

Ainda não consegui destrinçar os porquês exactos. Não que isso tenha grande importância. Mas eu gosto sempre de perceber os porquês.

Se calhar foi da entrevista na noite anterior, mesmo no finzinho do bacalhau gratinado com espinafres. Eu a colherar os últimos bocadinhos para a pequena boca desgostosa com as recusas de molho bechamel e a ralhar Simão, despacha-te, que já todos acabámos, só faltas tu., e a menina da Marktest a perguntar por Senhores com mais de 45 ou senhoras com mais de 35 que não se importassem de responder, é muito rápido, são só uns minutinhos. Sim, não me importo, que não deve ser fácil estar num call center a ocupar com inutilidades as famílias nas horas em que mais se atrapalham com os banhos, os jantares, as birras do Não quero ir dormir ainda, as estórias para contar e as cozinhas para arrumar. Deixei o pequeno a roer alegremente uma maçã, abri os olhos ao maior para se despachar e lá fui dizendo que não, não bebo cerveja, não, quase não vou a centros comerciais, anúncios? Sim, lembro-me de alguns. E então a menina, depois de me questionar hábitos alimentares, lojas de electrodomésticos e supermercados, pediu-me o nome, a idade, as habilitações e a profissão. O costume nestas coisas. Profissão?, hesitei. Eu sei lá. Limpo, arrumo, cozinho, vou às compras, cuido, brinco, leio estórias, jogo, coso os descosidos e os rasgados. Dona-de-casa? Doméstica? Ama? Mãe? Mãe é uma profissão? Rematei a dúvida com a actividade com que estou colectada nas finanças, ainda sorri com o já habitual Ah mas não tem nada a ver com a licenciatura que tirou!, aceitei os Obrigadas e os simpáticos Felicidades para os seu meninos e voltei ao bacalhau de um e à maçã do outro. Mas a mentira ficou ali a borboletar, a incomodar-me os pensamentos e as tarefas.

Ou então foi do telefonema da Mê. A Mê é uma pequena amiga, que se há grandes amigos também tem que haver pequenos. Na verdade a Mê é só uma casualidade por proximidade de moradas, mas ela acha que é minha amiga. E isso incomoda-me, que não sei como desempatar o mal-entendido. Deviamos transportar para a idade adulta as facilidades do Não gosto de ti, já não sou tua amiga, dos seis anos, que resolviam muitos problemas sem mais delongas nem embaraços. Inunda-me o mail de disparates tipo O que fazer em caso de sismo e Envie isto para dez pessoas e seja feliz para sempre e liga-me de vez em quando nas horas de expediente quando se apanha desacompanhada lá no escritório para falar mal dos pais e irmãos e da legião de gatos de rua a quem serve jantares todos os fins-de-tarde. E coabita com uma cadela e três gatas, o que agora dava uma conversa infindável, a relação da Mê com os bichos, e como muitas pessoas têm bichos para os prender com a desculpa do Ai, amo-o tanto e isto é o melhor para ele, mas fica para outra vez. Que eu agora quero exorcisar os porquês. Hei-de voltar à Mê num post qualquer. Se me apetecer. Queixei-me. Eu queixo-me pouco, mas ela perguntou-me pelos miúdos. E eu, com a mentira da noite anterior ainda a incomodar-me o dia e com o miúdo pequeno aos pés a esvaziar e a provar todo o conteúdo da minha mochila, queixei-me. Da falta de tempo, do sono, do cansaço, do miúdo maior sempre a precisar-me para tudo, do miúdo pequeno a tentar comer os fios dos candeeiros e a ração da cadela e a desarrumar a casa toda em segundos. Oh, não te podes queixar, tu tens tanta sorte, interrompeu-me a Mê, e eu ouvi-lhe, ali claramente na sorte, uns decibéis de que não gostei nada. Ainda pensei que estava a perceber mal, mas ela continuou Tens um marido, tens filhos, tens uma casa gira, tens uma vida boa, podes estar em casa com os teus filhos, o que é que tu queres mais?, e aí eu ouvi mesmo nitidamente sentimentos que nem vou aqui enumerar porque não gosto nada deles. Tens isto, tens aquilo, tens aqueloutro, continuou ela. E eu não tenho nada disso, subentendi eu, e queria ter. Apeteceu-me chorar. Eu quase nunca me queixo. Conto até cinquenta, penso que tudo podia ser pior, penso que há desgraças e doenças e sofrimentos a sério. Eu queixo-me mesmo muito pouco. Por isso aquilo doeu-me muito. Bastava um Tens razão, deve ser cansativo e frustrante, que eu ficava toda contente e se calhar até parava logo de me queixar e contava-lhe como o miúdo grande já lê tanta coisa e como o miúdo pequeno acena adeuses e chama nanana a todas as comidas. Fui salva dos tens por uma colega que lhe entrou pela sala. Para a próxima deixo o pequeno Joaquim puxar vigorosamente o fio do telefone. Ou mando a Mê para um sítio feio. Eu nunca mando as pessoas para sítios feios e tenho que me habituar a mandar para sítios feios quem merece.

Ou se calhar foi do TPC no livro de Estudo do Meio do miúdo. Uma família rodeada de actividades, Liga cada tarefa ao membro da família que a realiza na tua casa. Sem hesitar o miúdo riscou o pai ao conserto das tomadas e das lâmpadas, riscou-se a ele ao pôr a mesa e a seguir preencheu-me de traços. Amarelo, cor-de-laranja, verde alface, azul claro, roxo como tu gostas muito mamã, cor-de-rosa, azul escuro, vermelho. Sacos das compras, fogão com tachos a fumegar, aspirador, tábua e ferro de engomar, espanador e pano do pó, bebé a tomar banho, menino a edificar legos, estendal de roupa, não sei se mais algum de que agora não me lembro. Fiquei ali a olhar para aquele arco-íris, a mentira da noite anterior a pairar, os tens da Mê a ecoar. Está bem, não está, mãe? Está,filho, está.

Ou se calhar foi só do cansaço. Da roupa suja sempre a transbordar do cesto, do sono, das caixas ainda por esvaziar, do estar sempre a trancar as portas dos armários para o miúdo pequeno não me espalhar a vidinha toda, dos quatro dentes de cima a perturbarem-lhe a gengiva e as noites, dos Mãe, jogas comigo à bola?, Mãe, apertas-me os atacadores?, Mãe, ajudas-me? tão constantes, do tempo a correr e de me sobrarem sempre coisas por fazer. E de nunca ter meias-horas só minhas. Ou de tudo junto. Cheguei aqui e inaugurei o ano com um derrame desordenado de frases zangadas e queixosas sobre tudo o que queria fazer e não consigo fazer e sobre tudo o que não queria fazer e tenho que fazer todos os dias.

No dia a seguir reli-me. E apaguei-me. Que o url deste blogue não é Tudo o que não faço por causa dos meus filhos. E o template não é cor-de-rosa mas também não o quero cinzento-escuro. Há muitos dias cinzentos. Mas esses faço por os esquecer e não os quero perpetuar aqui.