sábado, 27 de agosto de 2011

mudança

Mude, mas comece devagar,
porque a direção é mais importante que a
velocidade.
Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa.
Mais tarde mude de mesa.
Quando sair procure andar pelo outro lado da rua.
Depois mude de caminho, ande por outras ruas,
calmamente, observando com
atenção os lugares por onde você passa.
Tome outros ônibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas.
Dê os seus sapatos velhos.
Procure andar descalço alguns dias.
Tire uma tarde inteira para passear livremente na praia
ou no parque e ouvir o canto dos passarinhos.
Veja o mundo de outras perspetivas.
Abra e feche as gavetas e portas com a mão esquerda.
Durma no outro lado da cama...
Depois procure dormir em outras camas.
Assista a outros programas de tv,
compre outros jornais, leia outros livros.
Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida.
Ame a novidade.
Durma mais tarde.
Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos, escolha comidas diferentes,
novos temperos, novas cores, novas delícias.
Tente o novo todo o dia.
O novo lado, o novo método, o novo sabor,
o novo jeito, o novo prazer, o novo amor.
A nova vida.
Tente.
Busque novos amigos.
Tente novos amores.
Faça novas relações.
Almoce em outros locais,
vá a outros restaurantes,
tome outro tipo de bebida,
compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo,
jante mais tarde ou vice-versa.
Escolha outro mercado, outra marca de sabonete,
outro creme dental.
Tome banho em outros horários.
Use canetas de outras cores.
Vá passear em outros lugares.
Ame muito,
cada vez mais,
de modos diferentes.
Troque de bolsa, de carteira, de malas,
troque de carro, compre novos óculos,
escreva outras poesias.
Jogue os velhos relógios,
quebre delicadamente
esses horrorosos despertadores.
Abra conta em outro banco.
Vá a outros cinemas, outros cabeleireiros,
outros teatros, visite novos museus.
Mude.
Lembre-se que a vida é uma só.
E pense seriamente em arrumar um outro emprego,
uma nova ocupação, um trabalho mais light, mais prazeroso,
mais digno, mais humano.
Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as.
Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa,
longa, se possível sem destino.
Experimente coisas novas.
Troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente, outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores
e coisas piores do que as já
conhecidas, mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança,
o movimento, o dinamismo, a energia.
Só o que está morto não muda!

Mude, Edson Marques

mulher-palhaço


Não me custava nada ter umas imagens da Marta Rodilla aqui a colorirem-me as paredes.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

resiliência

Devia ser pelos fins de setembro. Ou meios de outubro. Não sei. Não me consigo precisar nas datas, que na infância os tempos medem-se sem nomes de meses. Dias de escola e dias de não fazer nada. Dias de brincar na rua e dias de ver a chuva pelas janelas. Dias de gelados e dias de leite com chocolate a aquecer na língua. Mas havia uma luz dourada nas tardes, as solas dos sapatos entretinham-se a amachucar as folhas dos plátanos no caminho para a escola e as manhãs e os entardeceres já reivindicavam mangas compridas. Era, por isso, no outono. De certeza.

Tudo seria mais fácil se eu retornasse sem preocupações com os relatos dos acontecidos. Destronava os dois miúdos mais pequenos ali de mensagem de boas-vindas como se não estivessem lá a dormir desde o último outubro, amanhava umas desculpas bem-humoradas com as poucas horas, os muitos sonos, os excessos de roupa e as abundâncias de sopas e passava a telegramar-nos aqui a vidinha com umas ortografias levezinhas. Uma ou duas frases por dia, umas fotografias às sextas, ausências aos sábados e domingos numa espécie de quase compromisso laboral fácil de cumprir. O miúdo mais pequeno já tem os dentes de cima. Ela já trauteia uns passinhos tímidos mas decididos ancorada ao sofá. O mais crescido finalmente começou a ler. O médio acredita-se alpinista e trepa mesas, cadeiras, prateleiras e o beliche do irmão. Dissimulava as curvas, ocultava os solavancos, seguia em linha recta. Simples. Assético. Perfeito. Cor-de-rosa. Como se quer nos blogues.

Primeiro nasciam os cartazes nos postes da luz. Dois homens quase sempre barrigudos, quase sempre de bigode, quase sempre com pouco cabelo esfalfavam-se a agarrar às luzes da terrinha palhaços sorridentes. Falta muito, ainda falta muito, de certeza que ainda falta muito, iludia-me eu. Mas um ou dois dias depois aparecia a carrinha. Camuflada de fotografias e grandes letras vermelhas. Senhores e senhoras, meninos e meninas, roufenhava ela à volta do jardim, Todos os dias às vinte e uma, a carrosselar a rotunda da estação, Palhaços e equilibristas, por cima da ponte a atemorizar os peixes, Mágicos e trapezistas, a competir com a sirene do quartel dos bombeiros, Araras do México e tigres da Birmânia, a estacionar ao pé do mercado do peixe. Onde será a Birmânia?, perguntava-me eu, nariz e preocupações enfiadas no atlas, E como é que os tigres vêm da Birmânia, tão longe, para cá? De avião? Será que os tigres gostam de andar de avião? E não terão saudades do país deles? O incrível circo chegou à cidade, meninos e meninas, senhores e senhoras, a desacelerar-se muitas vezes na avenida da escola.

Ou então decidia que já não queria mais a caixa. Fazia assim uma espécie de escolha múltipla: a, termino-o como está, até parece um final feliz assim com os dois miúdos recém-nascidos como última imagem, não explico nada, tiro o mail ali do lado direito, esfumo-nos; bê, arremato uma despedida simpática, adeus, foi bom enquanto durou, até sempre, têm ali o mail, escrevam-me se quiserem, prometo responder; cê, carrego no delete, assassino este url. Pim, pam, pum, cada bola mata um, cê, fim. Vitória, vitória, acabou-se a caixa.

Se se portarem bem amanhã vamos ao circo, a voz da minha mãe na sala mesmo antes da correção dos ditados a negociar a desrotina, os miúdos todos contentes, cavalos, macacos, luzes e narizes vermelhos em vez de subtrações, adjetivos, pretéritos-mais-que-perfeitos e capitais de distrito. E eu a falar alto e virada para trás e a responder muitos Não sei aos Quanto é seiscentos e quarenta e cinco mais trezentos e noventa e sete? e aos Diz o nome de dois animais invertebrados., na esperança de que as faltas de esperteza e as incorreções me invalidassem o passeio. Eu não gosto muito de ir ao circo..., ainda encabulava timidamente no fim do dia. Que parvoíce, todos os meninos gostam de ir ao circo.

Ou então mudava de http. Roubava o título dos tangerinas, que nos está tão à medida agora, camuflava-nos debaixo de iniciais, o ésse, a jóta, , fabricava-me um pseudónimo e uma caixa de correio novos. Nos primeiros textos expunha as entranhas, mostrava as digestões mal-feitas, arranjava motivos, foi o pouco tempo, foram os muitos miúdos, foi a família. Resolvia-nos os problemas com a culpa dos outros, fingia que é possível esquecer o passado e começar de novo. Consolava-me.

Sentava-me no meio do cheiro a serradura e da excitação dos outros miúdos já a prender as lágrimas. Não entendo esta miúda, nunca gosta das coisas que as outras crianças gostam, a minha mãe a desabafar as desilusões com as minhas tristezas incompreensíveis com a colega do lado. Se calhar é por isso que não nos entendemos até hoje, nunca chorámos pelas mesmas razões. Tudo me afligia logo desde o princípio. A tenda descorada por muitos sóis e caminhos sitiada por rulotes tristes, os animais a bocejarem tédios e vontades de se mexerem nas jaulas, os miúdos despidos de cabelos sujos a brincarem com a terra do campo da feira. Fechava os olhos, apertava as mãos com força, respirava muito para ver se o coração afrouxava, Quem me dera trovões barulhentos e relâmpagos fulminantes, quem me dera que amputassem a eletricidade, que aluíssem a tenda, quem me dera que inquietassem os bichos, que os ajudassem a fugir para o México e para a Birmânia, quem me dera não estar aqui.

Ou então tirava um curso de escrita criativa como agora está na moda. Se calhar até já há por correspondência ou na net. Aprendia regras para desembaraçar este novelo narrativo, que tudo aqui tem nomes e recomendações de como fazer. Talvez arriscasse um poema. Fica sempre bem, um poema.

É que foi mais-ou-menos a mesma coisa. Primeiro apareceram os cartazes. Andava distraída, não os entranhei. Depois a voz espantou-me os silêncios e megafonou-se-me pela casa. Chegou o incrííííível espetáculo para toda a família. Descri dos sons, inventei-me alucinações. Até que a tenda se me insuflou no meio da sala, sufocando os livros e os brinquedos dos miúdos, e o apresentador, de cartola, bigodes retorcidos e lantejoulas gastas, me anunciou. A mim. E agora, senhores e senhoras, um número dificílimo. E eu a tentar em vão contorcer os pés num ésse para ampararem uma bola em frente da boca. E agora, excelentíssimo público, um momento mágico. E eu a não conseguir fazer crescer coelhos e flores de uma cartola. E agora, meninos e meninas , vamos todos rir. E eu a arriscar umas piadas infrutíferas e uns esguichos débeis da flor da lapela com as lágrimas a esborratarem a boca feliz. E agora um número verdadeiramente perigoso. E o leão a rosnar-me fomes e desobediências aos De pé e aos Salta. E agora, caro público, um momento inesquecível. E eu a desequilibrar-me do monociclo e os pratos a desequilibrarem-se dos arames e a estrepitarem cacos no chão. E agora, finalmente, senhores e senhoras, meninos e meninas, o grande momento da noite. Os tambores e os holofotes e o silêncio do público, um fio esticado sem amparo de rede lá em baixo e eu a pensar Não consigo atravessar isto, é agora, acabou-se.

Os holofotes apagaram-se, o público saiu sem palmas, o apresentador retorceu perplexo as pontas do bigode Isto nunca se tinha visto..., e despediu-me, a tenda desmoronou-se, os homens barrigudos recolheram carrancudos os cartazes. E eu fiquei ali deitada com os pedaços de mim todos dispersos pela serradura e pelo campo da feira, sem vontade de voltar nem para os dias nem para os miúdos nem para mim nem para esta caixa. Morri, não consigo levantar-me, não quero continuar. Até que o miúdo crescido, que agora (me) lê, retrocedeu no arquivo e pôs-se a rir e a mostrar-se aos irmãos, Oh, este sou eu? Tão pequeno! E eu dizia isto? Que engraçado, não me lembrava! E o Joaquim aqui estava tão bebezinho e gordinho! Oh mãe, tu tens que escrever aqui no blogue senão nós quando formos crescidos não vamos saber como éramos em pequenos.

Por isso alcancei os meus bocados, desamolguei-os, aconcheguei-os com fita-cola e uhu, esperei pacientemente que se confundissem e começassem a trabalhar. Voltei primeiro para os miúdos, depois para os dias, agora para esta caixa e a seguir a ver se consigo o para mim. Que é o mais difícil.

Nunca mais vou ao circo.