quarta-feira, 28 de maio de 2008

crónica de uma morte anunciada

Disseram-me tantas vezes para me preparar. Tem que se preparar. Tens que te preparar. Amigos, médicos, farmacêuticos, quase-desconhecidos, donos de cães e de gatos que tiveram que se dividir deles assim, a contragosto, a decidir-lhes o como e o quando terminar. Já sabe o que a espera. Já sabes o que te espera. Como se fosse fácil. Como se o saber o que vai acontecer aligeirasse as dores e desagravasse o acontecido.

Claro que eu sabia. Princípios, meios, evoluções e conclusões. No meio de tantos médicos e tantos googlamentos e tanta pesquisa por farmácias e alternativas não encontrei um único final feliz. Por isso eu sabia. E sabia que tinha que me preparar. Fosse lá isso o que fosse.

E depois ela habituou-nos mal. Que há dois ou três anos conjecturaram-lhe não mais do que um mês mas ela curou-se e sobreviveu e depois, nas outras subtracções, desanestesiou-se e normalizou-se sempre depressa e bem. E ronronava e comia, comia e ronronava, ronronava e comia. Sossegadinha, a poupar nas agitações, mas com fome e com contentamentos. E nós esperançávamo-nos Pode ser que isto se mantenha só na pele, Pode ser que não vá para os pulmões nem para o aparelho digestivo nem aqui para cima para as vias respiratórias, Pode ser que ainda se aguente assim um ano ou mais, Pode ser que haja um milagre, Pode ser. Aumentavam e prosperavam vertiginosamente, os malignos, e alguns sangravam, aterradores, mas ela ronronava e comia. E eu desimportava-os Isto é só na pele, nem lhe deve doer, convencida que a morte vinha longe, devagar e avisava antes. Que me dava tempos para me preparar.

E de repente na sexta ao encestar no meio das papaias, do requeijão e dos cereais de canela um saco de ração apropriada para estômagos idosos, pressionada pelos miados diários sempre que via o miúdo a esbanjar biscoitos pelas tartarugas do quintal, a despropósito atingiu-me um Isto é tão grande, um pequeno chegava, duvido que ela tenha tempos para o comer todo. Repreendi-me no mesmo ápice, Pessimista, a chamar a desgraça, ela está bem, não vai morrer tão cedo e trouxe o pacote grande. Pergunto-me agora o porquê da intuição da véspera, se a prateleira delas estava ajoujada de saquetas e latinhas e nunca ao ensacá-las nem ao enfileirá-las por cores e sabores me tinham atingido tais preocupações com tempos e sobras. Não expulsava os moles nem os biscoitos desde que fossem poucos e descoloridos. É bom sinal, congratulava-me, que se ela começar a vomitar tenho que começar a preparar-me.

Tu não me morras antes de eu aí chegar, gata, tu espera por mim, tinha-lhe dito o dono a meio da semana, em alta voz enquanto eu dobrava as calças e as camisolas do miúdo e ela me ronronava o colo. Ligeiro, uma frase solta, sem peso nem futuro, a que ela respondeu com os rons e turrinhas costumeiros sempre que eu o punha a ecoar pela casa ao mesmo tempo que limpava o pó ou cortava batatas e courgettes para a sopa. Disse-me depois uma amiga, muito dada a karmas e dharmas e espiritismos e budismos, que eles, os domesticados, esperam pelos donos para morrer. Consigo sorrir, agora, com o bonito da resolução, morrer acompanhado pelos mais-que-tudo.

A menina-gata, como sempre, satisfez-nos a intuição minha e o pedido dele. Esperou pelo dono e não chegou a provar os biscoitos do pacote branco. Mas nós não estávamos preparados.

terça-feira, 27 de maio de 2008

prólogo

Ainda considerei sumarizar o ocorrido na fotografia e nas datas, deixar andar a ausência e prosseguir com as pequenas frivolidades de todos os dias Hoje birrou vergonhosamente na bilheteira do cinema, Esta tarde enfornámos o melhor bolo de côco de sempre, Descobriu que nas eras dos dinossauros já germinavam baratas. Na ilusão de que os desrelatos fossem capazes de fazer o final da estória parecer feliz. Mas olho-lhe as bochechas de menino minguadas por três dias de choros e de saudades e de quereres perceber e compreendo que não há como não palavrar esta experiência aqui.
Este domingo reduzimo-nos a quatro. Este domingo perdemos a nossa menina-gata. E não sabemos muito bem como avançar sem ela...

segunda-feira, 26 de maio de 2008

gata tai

10 abril 1996 - 25 maio 2008

sexta-feira, 9 de maio de 2008

sexta monstruosa

Hoje amanhecemos na monstrinha.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

uma receita de vez em quando

Dois quilos de morangos muito vermelhinhos, sessenta por cento do peso dos morangos em açúcar amarelo, umas horas a amigarem-se no tacho, uns setenta minutos em lume nem alto nem baixo a mexer de vez em quando até se estradar pelo pires. Fácil, tão fácil que até parece imerecido saber tão bem. Eu cortei, ele açucarou, mexemos mais-ou-menos a meias, eu enfrasquei, ele morangou os rótulos. Brincamos muito, agora, aos cozinheiros.

Às vezes é tão simples adoçar as tardes, o pão e os amigos.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

um segredo coloreto, quem está livre livre está.

É que foram dias muito, muito, muito complicados. Um mês, ou dois, ou um e meio, nem sei, que quando deixamos de dormir o tempo mede-se em sequências inexactas dos relógios. Os adenóides agigantaram-se e entupiram-lhe as inspirações diurnas, as amígdalas agigantaram-se e entupiram-lhe as inspirações nocturnas, eu entupi-me de medo das apneias de vinte e tal segundos e de insónias e de telefonemas para lhe urgenciar a operação. Ele enfadou-se da comida, olheirou-se, emagreceu. Eu esqueci-me de comer, olheirei-me, emagreci. Sobram-me centímetros nas saias do verão passado e ontem enfiei-me sem a miníma dificuldade numas calças cinzentas trinta e quatro. Trinta e quatro. Eu não me lembro de vestir trinta e quatro. Foi operado. Choramingou dores e recusas em engolir e ainda se despesou mais. A gata morre-me todos os dias um bocadinho.

Cansada, acho que nunca me senti tão cansada.

um-dó-li-tá, cara de amendoá,

É a última coisa que me ocupa antes de adormecer. Ou melhor, a penúltima, que a última é sempre ir perceber-lhe mais uma vez os sonhos e os respirares no escuro do edredão azul dos animais. Elefante, girafa, passarinho, macaco, cobra sorridente, pato patudo, todos a enxotarem pesadelos e monstros noctívagos. É tão lindo, a dormir, o meu menino. Escrevinho os dias e os acontecidos nas linhas azuis do caderno de capa preta que está na prateleira de baixo da mesinha branca que me apoia o candeeiro e o despertador. Andámos na roda gigante, não teve medo nenhum; Aprendeu o que quer dizer coscuvilheira; Fomos ao cinema ver o Peter Pan; Enfornámos o melhor bolo de laranja do mundo; Escreveu gato e peixe em maiúsculas desencontradas e entortadas mas percebíveis por baixo do desenho; Perguntou-me E depois quando a gata morrer ela vai nascer outra vez e ser nossa outra vez? Por favor, pedes-lhe para ela voltar para nós?. Uma, duas, três no máximo frases por dia, às vezes só uma palavra tonta de sono. Insignificâncias, páginas de insignificâncias esperançosas de lhe perdurar as memórias dos dias de menino. Agora resta-me a decisão. Ou arranjo tempos e inspirações para nos preteritar por aqui ou arranco as páginas do caderno e não promovo estes dias a conteúdo de blogue.