quarta-feira, 28 de março de 2007

o provincianinho vai a lisboa

Faço e refaço as listas e as malas. Um saco para nós, três para ele mais o triciclo. Levo mais coisas do que dias. Malvados que-pode-dar-jeito-ou-fazer-falta... Deixo uma gata e uma cadela desoladas, roupa por passar e quatro ou cinco drafts. Já voltamos.

Voa, voa nave amaiela que vamos de férias pa liboa...

terça-feira, 27 de março de 2007

desculpa, filho


O miúdo antes perguntava-me se eu estava zangada ou contente e isso intrigava-me, não por ele mas por mim. Depois deixou-se dessas bi-interrogações e agora, lá muito de vez em quando, inquire Tu gótas de mim, mamã? E só a possibilidade da suspeição deixa-me dorida. Será que ralho a mais? Que grito a mais? Que castigo a mais? Que me zango a mais?
"Hoje de manhã, a minha mãe gritou comigo, e eu fiquei desfeito. A minha cabeça voou para junto das estrelas. O meu corpo perdeu-se por entre as ondas do mar. As minhas asas voaram e só pararam na selva. O meu bico foi parar ao cimo de um monte. A minha cauda ficou perdida no meio da cidade. As minhas patas, primeiro, ficaram paralisadas, mas depois, começaram a correr, a correr sem parar. Eu queria encontrar-me, mas os olhos estavam perdidos no Universo... queria pedir socorro, mas o meu bico continuava no meio dos montes... queria esvoaçar, mas as asas continuavam perdidas no meio da selva. As patas estavam já tão cansadas que pararam para descansar no deserto, para aproveitarem o fresco de uma grande sombra que por ali passava. A mãe, depois de ter gritado, tinha ido ao encontro de cada parte de mim e, com paciência, linha e agulha, já tinha unido quase todas. Só faltavam as patas. Desculpa! - disse, por fim, a mãe que tinha gritado."
Sim, meu querido. Gosto. Gosto quando rio e quando grito. Gosto quando dou beijinhos e quando dou palmadas. Gosto muito. Gosto sempre.
Quando a mãe grita..., Jutta Bauer, Ana Paula Faria - Editora

as primeiras pedaladas


Eu tinha que ser a melhor na escola, ter os cadernos em ordem, uma letra bonita, os trabalhos-de-casa todos feitos, a mais bem-comportada, a de saias sem pregas amarrotadas. As ameaças de ausências de amores maternos e paternos coroavam qualquer ínfima dificuldade. A mamã não gosta de ti se te portares mal ou se te sujares ou se deres erros no ditado ou se te enganares nas subtracções. E eu esforçava-me, esforçava-me muito, e tinha pesadelos com os açoites e as reguadas e sobretudo com uma mamã que não gostasse de mim. Mas nunca chegava. Os cemporcento nos testes, os cincos a quase tudo, o quarto tão arrumadinho, ficar sentada sossegadinha na cabeleireira em esperas de cortes e rolos, as não-birras, as sestas sem sono. Nunca chegava. Fosse lá o que fosse que esperavam de mim, eu não era suficientemente boa ou esforçada ou esperta ou outra coisa qualquer. Tive que crescer muito e que ter um filho para ouvir Ele já devia comer sózinho com faca e garfo e Tu com esta idade já andavas e Ele é um trapalhão a falar, não se percebe nada do que diz e para entender duas grandes verdades: a falha não era minha e maus pais dão péssimos avós.
É por isso que os meninos perfeitos me deixam em desconfianças. Os melhores na escola, que tocam piano na perfeição, que ganham os jogos de ténis, que ainda praticam equitação e natação e mais quatro ou cinco coisas, que nunca fazem uma birra, que comem tudo o que têm no prato, que têm a roupa sem uma nódoa, que não resmungam para cortar as unhas dos pés e que se deitam sempre a horas. Ou melhor, as mães destes meninos é que me deixam em desconfianças. Gostariam deles, se eles não fossem perfeitos? Se tivessem más notas, se batessem nos colegas, se entortassem os joelhos, se berrassem todos os dias na hora de lavar o cabelo? Gostam deles? Gostam de alguém?
Eu gosto muito do meu filho. É um amor grande, que às vezes até se me afigura excessivo, mais importante do que qualquer outra coisa. Mas eu não deixo que este amor me tolde a imparcialidade, que fique dependente de pódios. Não sei se ele será o primeiro nalguma coisa, concerteza será o último alguma vez e o do meio em muitas. O meu filho é imperfeito e eu não preciso que ele seja perfeito para o amar. Faz parte, acho eu, da minha tarefa de mãe, não lhe exigir perfeições para o ajudar nas dificuldades. Respeito-lhe os ritmos e aplaudo-lhe entusiasticamente todas as pequenas conquistas do crescimento mas sei que algumas chegam a desoras. E ele tem feitios que se não são defeitos até parecem. É demasiado impulsivo, com níveis de excitabilidade e de movimento que colidem com os funcionamentos das coisas, pessoas e eventos. E é demasiado teimoso. Tão teimoso que é, o meu menino! Uma falta de maleabilidade que me exaspera até aos gritos e me inquieta os futuros. Eu não góto dito, eu nunca na vida vou comê eta pocaria; Eu não quéo lavare o cabelo, ainda ontem lavei, não quéo; Eu não tenho vontade de fazer xixi, agora a seguir faço na falda; Eu não sei pedalar, eu sou pequenino, quando quescer logo pedalo. Andamos nestas percas de energias e paciências há que tempos, em insistências para comer laranjas e alface, em esfreganços de champôs acompanhados de gritos, em ameaças de tirar a fralda da noite, em explicações de facilidades Vês? Assim, um pé para baixo, outro para cima, Não, não, não quéo! Não consigo!
Hoje, enquanto eu estendia lençóis, pedalou pela primeira vez. Olha mamã, tou a pedalar! Já quesci! Já sou um menino guerande!
Vai ganhar uma bicicleta nos anos.

segunda-feira, 26 de março de 2007

a senhora da loja

Ele é eléctrico! Não pára! E tão falador! Muitas vezes vêm cá miúdos muito envergonhados, até se escondem atrás das pernas das mães quando lhes pergunto o nome. Ele... nada envergonhado! E muito esperto, sabe imensas coisas sobre os animais todos! E é muito educado. Muito educado.
Novinha, tão novinha, muito loirinha, muito bonitinha, com um sorriso simpático. No fim de uma meia-hora de respostas ao pirralho, elogia-o e elogia-me. Espequei, carteira numa mão, multibanco na outra, miúdo atrás a fazer splashes e saltos com a baleia-cinzenta-prémio num oceano de ar. Não estou habituada a que mo elogiem. Não estou habituada a que me elogiem.
Se eu fosse tão espontânea nos afectos como o meu filho tinha-lhe dado um abaço apetádo e uns beijinhos nas bochechinhas para agradecer o desanuviamento destas preocupações que comigo coexistem sempre, se me estarei a sair bem neste complicado papel de mãe. Ele fê-lo por mim. E ainda acrescentou Gotei muito de falá contigo, senhora. Quando saímos, eu a digerir os discursos, ele nos últimos adeuses para dentro da loja, adendou Eta senhora era muito simpática. E muito faladora, mamã!

a última chucha

A dentista tranquilizou-me as preocupações por entre os zumbidos da broca. Que é só a partir dos quatro que a arcada superior começa a deformar-se e que as ligeiras discrepâncias que já lá ziguezagueiam se vão encarreirando progressivamente sózinhas. Não descansei muito, que os anos e as experiências ainda não me ajudaram a ultrapassar os medos de ir ao dentista e não me apetece nada duplicar os (sempre adiados) martírios. Mas também não quis cortá-la nem fazê-la desaparecer misteriosamente nem forçá-lo nem impôr-lhe prazos. Fui conversando, explicando dentes entortados e vantagens de meninos crescidos e desvantagens de bebés. Ouviu-me e percebeu mas faltou-lhe a coragem Eu ainda sou pequenino. Quando quescer mais logo deixo de usar chucha. Aceitei-lhe os ritmos. Deixei-lhe a decisão.
Os caninos de menino romperam a borracha. Ridicularizei a compra de uma nova, o miúdo a um mês de fazer os quatro anos, mas não o achei capaz de adormecimentos de boca vazia. Ontem de manhã pediu-me se a podia ir pôr no lixo. Tu a seguir compas-me uma nova, mãe, eta tá velha, já não serve. A preocupação soou-me tão inexistente que o suborno saíu-me antes de o pensar Ah, eu ía comprar aquela baleia que tu queres muito mas não tenho dinheiro para as duas coisas, assim vou comprar a chucha e já não posso comprar a baleia. Certificou-se se a fofinha (a fralda de pano) podia ficar, escolheu a baleia, deitou a chucha para o lixo sem saudades nem dúvidas. Fiquei lá um bocadinho a seguir às estórias a musicar o escuro com cucos e lobos e baratas e os bocejos entre desafinações asseguraram-me que os sonos íam ser rápidos e descansados. Sesta e noite sem um ai de ausências. Hoje, já a partilhar a almofada e o escurinho com a (merecida) baleia, abraçadinho à minha mão e à fofinha, participou-me Eu não peciso de chucha, já sou quescido. Tou muito feliz a cantar contigo e com a minha baleia.
Tive vontade de ficar lá a ouvi-lo crescer.

domingo, 25 de março de 2007

bipolegar

Posso ganhar aquela cavadoza gânde mais a baleia gânde quando fizer quatro anos? Olhos inquietos, mindinho, anelar, médio e indicador espigados. Digo que sim. E quando fizer cinco posso ganhar o gânde barco pirata? Aumenta-se o polegar. Digo que sim. E quando fizer seis... Demora-se em intrigações na mão. Então, filho, como é que fazes, o seis? Ah, quando fizer seis vai-me nascer mais um dedo aqui. Resolutivo, aponta para o metacarpo. Vês, seis dedos, seis anos.

sábado, 24 de março de 2007

...


Como se em adivinhações do que aqui recordará quando para isso maturar entendimentos, ontem, enquanto o tentava aquietar com ralhos e bolachas para conseguir escolher-lhe camisolas e provar-me calças, apareceu-me com esta pendurada no cabide. Podes compar-me eta, mãe? Góto muito dela. Tem letas, olha. Um bê, um ó, eta não sei, é um vê? E um á, um tê, não... três tês, um i, é um i? Não tem bolinha... Um ú, um dê e um é. Trouxemo-la, claro, embora seja para cinco anos, que só falhar o ípsilon tem que ser recompensado.

sexta-feira, 23 de março de 2007

boys make war


E também tenho feito por não lhe exagerar as cruezas. Não há cá em casa espadas nem pistolas nem soldadinhos nem índios nem cowboys nem superheróis nem actionmen de ar mauzão. Ainda não vê aqueles desenhos animados horríveis de personagens olhudas e longilíneas que passam os episódios em saltos, gritos e lutas. Não pretendo desgastar-me em compras de jogos de computador e consolas estimulantes das guerreirices e asperezas - pelo menos enquanto as pedichinces e os argumentos do Mas toda a gente tem não se tornarem inouvíveis.
Tem carrinhos e camiões e comboios e escavadoras e aviões e mais rodados e asados. E bolas e (agora muitos) jogos e legos. E bichos com penas, pêlo, carapaças, barbatanas e de plástico. E ferramentas e canas-de-pesca. E fantoches. E tintas e lápis. E livros, muitos livros. E depois tem os melhores brinquedos. A terra, a areia, a água, as folhas das árvores-neve, os nacos de soja-pedras, o esparguete crú-carga de camiões, as pedras-montes, as laranjas-planetas, as caixas-garagens, os novelos de lã-bolas, as garrafas de plástico-peças de jogos. O faz-de-conta da infância, que depois vai embora e deixa tudo mais descolorido.
Eu até já andava a problemar-me. Quando no Carnaval ele me perguntou acerca da natureza e profusão dos superhomens e homensaranhas ralei-me um bocadinho Eu se calhar estou a exagerar, depois o miúdo não sabe brincar com os outros a estas coisas, e os traumas de infância e os diferentes e tal. Mas há uns dias, empacotados no meio do hambúrguer e das batatas, eclodiram uns daqueles robôts andróidizados de ar feroz. Olha mãe, são robôts maus! Ete tem uma pitola. Pum, pum, dipara tiros. Morreste, mãe, tás morrida. E uma pada. Uau, uma pada! Com bicos! Hum... se calhar não é uma pada, se calhar é uma serra pa cortar as pessoas ao meio. Estupefactei. Oh! O pai relativizou os excessos Então, nós antes brincávamos com soldadinhos e cowboys, eles agora têm estes com superpoderes, é o mesmo. É normal, as crianças são assim, os rapazes ainda mais. O Y. O inatismo do Y. O Y a brincar às guerras, o X às princesas e às casinhas. As diferenças...
Qual é o cromossoma da violência?
Ontem interrompeu-me as passagens a ferro com os esquisitóides Mãe, podes fazer uma magia pa eles serem bonzinhos? Tou farto de serem maus, tão lá no meu quato só a dar tiros... Fiz um rás, zás, trás, pusemo-los a descansar das malvadezas e fomos colorir árvores e mochos.
Tenho cá para mim que os cromossomas também se educam...

quinta-feira, 22 de março de 2007

boys don't cry

Tenho feito por não lhe exagerar os meninismos. Põe a mesa, ajuda-me a limpar o pó, arruma pequenos objectos, levamos o lixo, cuidamos dos animais, vai-me buscar precisões à casa-de-banho ou ao quarto dele, fazemos bolos, varremos as folhas. Ainda não dá passou-bens. Motivo-lhe os beijinhos, os abraços, as ternuras, as compaixões Vês? Ainda é pequenino, tens que ser meiguinho... Mesmo sem os ter pedido tem tachinhos e colheres e uns dois bonecos com babetes e biberões e roupinha e cozinha e electrodomésticos (porque é que são sempre cor-de-rosa? Quem são os donos dos preconceitos, os fabricantes ou os pais?...). As famílias de camiões (papá-camião, mamã-camião, filho-camião) e as famílias de escavadoras e as famílias de jipes volta e meia tomam banho, jantam e são deitadas a dormir, tapadas com as mantinhas. Cá em casa há muitas tarefas divididas, consoante a quem sobra mais tempo ou vontade. Se nos dessemos ao trabalho dessas contabilidades não sei qual dos dois lhe terá mudado mais fraldas ou dado mais banhos em bebé. Agora, na rua, é sempre o pai a colar-lhe os cansaços, que os quase dezoito kilos incapacitam-me as costas e os passos.
Ontem, enquanto o pai lhe tentava calçar os sapatos, expulsou-o e exigiu-me. Quando lhe perguntei os porquês lugarizou-nos a todos sem dúvidas O pai tem que tabalhar com as coisas lá no atelier, a mãe faz o almoço e cuida de mim, eu binquo.
Qual é o cromossoma do machismo?

quarta-feira, 21 de março de 2007

as pequenas memórias


Nunca consegui papaguear a tabuada dos oito e dos nove. Sempre contei pelos dedos e usei destes lápis.

terça-feira, 20 de março de 2007

sem raízes


Sempre me senti assim, desenraizada. E agora, cada vez mais, esta vontade de enraizamento. De ter raízes. De ser raízes. De plantar o meu filho numa terra ampla, boa, saudável, solarenga. De o adubar. De o fazer subir árvore frondosa, de raízes bem agarradas ao chão e troncos a tocar as nuvens. De nunca o cortar.

sem céu


Quando cá chegámos era um arbustinho, raízes a sobrarem num vaso pequeno, folhas a empalidecerem por ausências de sol e de atenção. Oferecemos-lhe uma nova casa na terra, demos-lhe espaço, água e adubo e expectámos, duvidosos da sobrevivência. Em sete anos (já aqui estamos há sete anos? Como é que um provisório se infinitou tanto?...) alturou-se, engordou-se, clorofilizou-se. Tornou-se apoio de ninhos, poleiro de pardais e de melros, céu de quintal, sombra de dias quentes, vedação de olhares de vizinhos curiosos, cabide de mobis e espanta-espíritos. Foi a primeira árvore que sombreou os sonhos exteriores do meu filho ainda bebé, as primeiras folhas em que tocou, o primeiro tronco que abraçou e em que fez cucus. O canto dos pássaros ritma-nos as brincadeiras diárias, o vento nos troncos embala-nos os sonos. Numa casa em que não gosto de quase nada, este ficus e a palmeira que nos nasceu por acaso lá à frente são as duas únicas coisas a deixar-me saudades na hora de mudar.
Agigantou-se. As raízes, subterraneamente, silenciosamente, agigantaram-se também. Ameaçam-nos o equilíbrio do chão, a verticalidade do muro, o abre-e-fecha do portão. Parece que não há alternativas. Parece que temos que a cortar. Custa-me. Custa-me muito. Porque é jovem, forte, bonita, verde. Porque é errado cortar árvores. Porque a sinto nossa. Porque não são só raízes, troncos e folhas, são memórias. Também da infância, dos crescimentos e das brincadeiras do meu filho. Sinto-me desprotegida. Sinto o meu filho desprotegido.
Desculpa árvore.

segunda-feira, 19 de março de 2007

verdadias


Cresci a descreditar as festas exigidas pelos calendários. Dias do pai, da mãe, páscoas e afins eram falácias, dias isolados para fingir prendas e carinhos e alegrias não sentidos nos todos. Hipócridias, chamava-lhes eu, nas alturas em que me vestia de preto e lia Kafka. A vida é sempre, não é esporádica, opinava e certezava. Sim, que eu tinha muitas opiniões e certezas sobre tudo e todos. Quando o meu amor e o meu filho me descontextualizaram das ausências em que nasci, fiquei grata por tantos números engrossados a outra cor no meio das semanas. Relembram-me que ter a casa desarrumada, torres de roupa para passar a ferro, não-tempo para ir cortar o cabelo e não-sossego para pensar são picuinhicezinhas comparadas com as presenças em que vivo agora. E que temos que as celebrar, nestes e em todos os outros dias.
Criamos rituais nossos. Fazemo-nos família.

quase quatro anos de pai

Pai árvore, filho pássaro.


Pai árvore, filho esquilo.

domingo, 18 de março de 2007

quem nasce torto...

Polegar, indicador, médio... Anelar, mindinho. Dedo mindinho, seu vizinho, pai de todos... Fura bolos, mata piolhos. Mão direita, mão... Torta! Ah, enganei-te, mãe! Quêda, mão quêda, não é torta!
Tem sentido de humor, portanto, o pirralho. Menos mal.

sábado, 17 de março de 2007

espertelhaçadas

O miúdo, para além dos poemas, também engraça com lengalengas, trava-línguas e cantorias. Passa pelos dias a ritmar Era uma vez um gato maltês, a enrolar-se nos Pia a pinta, pinga a pipa, e a desafinar cantorilices conhecidas e inventadas Era uma vez uma vaca que vivia num lindo tábulo... a mugir trálálá... E a dispadisparatar. Um pum pendurado no naiz. Blharg. Risos. Um xixi pendurado no naiz. Blharg. Risos. Uma gata pendurada no naiz. Blharg. Risos. Tudo o que lhe vier às ideias e às vistas pendurado no naiz. Blharg. Risos. Parvoíces e mais parvoícezinhas, Cocó, tu pareces um cocó, mãe, tens um pingo de cocó na blusa, pai. Risos e mais risos e mais risos. Um autêntico palhaço.
E, quase ao mesmo tempo, pequenas espertezas. Ouvidas talvez nos desenhos animados (mas ele vê tão poucos...) ou ao pai ou sabe-se lá onde. Não são pratos, são címbalos. Tás a ouvir eta música? O intumento que tá a tocar é um violino. Um géiser é assim um buraco no chão por onde sai a água, vrum, muito alto e depéssa. Metamofóse. É metamofóse, quando a lagáta se tanfoma em boboleta. Já vite que falua e lua são tão pacidas, é lua com o fa antes. Se calhá é um barco em foma de lua. Eu sei, também fizeram tradas e andavam em quadigas e tinham padas (depois de eu lhe dizer que a ponte era romana, construída pelos romanos, e os romanos eram...). Adeus em inguelês é goodbye. Di lá, mãe, goodbye. Muito sério, muito sabedor, muito explicador.
Um palhacinho esperto.

sexta-feira, 16 de março de 2007

dias com poemas


No ainda não completamente reorganizado escritório tem crescido a prateleira dos livros que vão ser para ele quando espigar mais um bocadinho. Escolhas do coração. Algumas das minhas leituras de menina pequena e grande, algumas compras com ele ainda na barriga e depois já nos braços, alguns ainda na lista dos para comprar. O Principezinho, claro, a menina do mar e a fada oriana e os outros da Sophia, muitos da Alice (o Rosa, minha irmã Rosa e o Chocolate à Chuva e o Lote 12 - 2º Frente, tantas vezes lidos e relidos e rerelidos), a Dentes de Rato da Agustina (que contado muito por alto já me garante dentadas nas maçãs da cesta Vês? Dentes de rato! Foi a dentes de rato!), O pequeno livro dos medos e outros contos do Sérgio Godinho, O Gato e o escuro do Mia Couto e outros mais, perfiladinhos e arrumadinhos, à espera do tempo certo para sílabarem sonhos. Há dias foi lá pescar Aquela nuvem e outras e apareceu-me a meio dos desfiamentos do frango em pedinchices de Conta lá ete que eu já sou guerande. Um bocadinho a contragosto, que eu não simpatizo muito com o Eugénio de Andrade e não gosto de retardos no almoço, lá lhe lengalenguei as páginas. O miúdo tomou-lhe o gosto e agora poema-nos os dias com formigas, pastores, caracóis e joaninhas. O Miguel trocado por Simão para rimar com pão tornou este o mais peferido de todos.
Sete palmos, sete metros,
anda a formiga por dia
(sete palmos a correr,
sete metros devagar),
só para lamber o mel
que lentamente escorria
quer da boca quer do pão
quer dos dedos do Simão.
Ando cá em dúvidas se não devia reler o Eugénio de Andrade para ver se me passam as antipatias. Ah, e gosto muito das ilustrações da Joana Quental.
Aquela nuvem e outras, Eugénio de Andrade, Quasi Edições

quinta-feira, 15 de março de 2007

arquivado

Reorganizo-nos o ano. Furo, agrafo, agrupo por temas, encaixoto, encapo, rasgo e deito fora. Escrituras de compra e venda. Recibos e mais recibinhos. Facturas da água, facturas da luz, facturas do telefone, facturas da net, facturas de tudo. Seguro do carro. Selo do carro. Inspecções do carro. Do que já não temos. Do que temos agora. Certidões de nascimento, certidões de óbito dos meus sogros. Multas. Multas? Papéis inúteis, rabiscados com desimportâncias. Perco dois dias nisto, interrompidos constantemente pelos Então, mãe, ainda não tá? e pelos O que é ito? Posso mexer? Dois dias desaproveitados em desarrumações de papéis que se vão acumulando ao longo do ano. Uma preguiça imensa, enorme, de cada vez que penso Tenho que desconfusar aquele monte de despréstimos, Agora não tenho tempo, amanhã ou depois trato disso. Eu sou organizada mas as papeladas desorganizam-me. Gastam-me horas. Confusam-me. Ter a vida espartilhada em quatro prateleiras de dossiers de datas e receitas e gastos e nascidos e casados e morridos. Ser sujeito passivo, ele ser dependente. Sermos habitantes de arquivos empoeirados.
Atraso-me. Entrego sempre o irs no último dia.

terça-feira, 13 de março de 2007

quarto lugar

O pai em distracções de garfadas de dourada grelhada Então, gostas mais do papá ou da Boba? Da mamã. Muito bem, boa resposta. E a seguir à mamã, de quem é que gostas mais? Da Boba, da gata e do papá.

segunda-feira, 12 de março de 2007

a casa das papoilas


Apanhamos malmequeres (mal-me-qué, bem-me-qué, muito, pouco, nada, mal-me-qué, bem-me-qué...) e papoilas e azedas e minúculinhas flores lilases sem nome nos canteiros de terra do largo ali de trás. É um largo grande, entraseirado por sete ou oito prédios onde há sempre roupa de meninos a secar ao sol mas onde nunca há meninos a brincar. Pergunto-me sempre onde estarão os donos da roupa que descora nos estendais. Sempre nas escolas? Em frente à televisão? Já em frente ao computador? Não chegarão lá os ecos das corridas e dos risos do meu filho? Não terão vontade de brincadeiras aqui fora? É um largo bom para apanhadas e pedaladas e pontapés em bolas, não tem carros, tem árvores e dois laguinhos e um canteiro grande de terra que nestas alturas se perfuma de flores e de abelhas, mesmo a pedir que lá plantem uns baloiços e um escorrega. Ficamos por lá uns fins de manhãs e de tardes, ele a tricicletar rampas e a apanhar as "bolinhas" dos ciprestes, a cadela a cheirar presenças, eu a ler ou a pensar na vida. E às vezes apanhamos flores. O miúdo pergunta-me se gosto de malmequeres, se gosto de azedas, de quais gosto mais. As interrogações expectantes das minhas preferências para depois as fazer dele Eu também góto muito de malmequeres, eu não góto nada de utigas, as papoilas também são as minhas peferidas. Tenho vontade de lhe dizer que não precisa gostar do mesmo que eu, que o amor não é feito só de concordâncias mas também muito do respeito pelas discordâncias, e que ao longo da vida vamos, concerteza, ter muitas desopiniões e isso não nos deve léguar os afectos. Penso Devia traduzir isto tudo para linguagem de menino, flores-papoilas-preferidas nas mãos, e de repente lembro-me. Do terreno. Grande, uma tira larga, comprida. Mais que suficiente para lá crescer uma casa e um atelier e ainda sobrar muita terra. Um bocadinho elevado em relação à estrada de alcatrão, sem vizinhos à vista, com árvores e um poço. E papoilas. De uma ponta à outra, papoilas. Vermelhas, vermelhas, vermelhas. Cheias de sol e de promessas opiáceas de felicidade. O sítio mais que perfeito para viver, para trabalhar, para ter filhos, para os fazer crescer. Mas os bancos não percebem nada de flores. Só percebem coisas chatas como pouca idade, juntos em vez de casados, primeiros empregos, ausência de plafond para começar a construir... Com tantos entraves, tivémos que mudar os planos nas papoilas para outras terras nada floridas. Ainda sonho com elas, às vezes, vermelhas, tão vermelhas. E pergunto-me como seria a minha vida, a nossa vida, lá, se o meu filho seria diferente, se nós seríamos diferentes, lá, na casa das papoilas...

Trazemos os cheiros para casa, florimos jarras e garrafas, colorimos parapeitos e mesas. Prometo-lhe Um dia destes compramos uma terra cheia de papoilas, fazemos uma casa, mudamos, queres? Sim, mãe, quéo, quéo muito!

domingo, 11 de março de 2007

débuts

Depois de tanta asa e patinha peluda lapisou, ao colo do pai mas por iniciativa dele, a factura da água com émes e ás e is e ós (quando até agora só fazia o ó e o i a pedido). Vês, pai? Já sei xquever. Já sou quescido! A seguir, ainda no mesmo colo, estreou-se aqui na interlândia nos jogos dos meninos que lhe explicam porque é que deve comer de tudo, espinafres e peixe cozido incluídos, e depois riu perdidamente no boing boom tschak, música dos kraftwerk (que o pai tanto adora) que dá para barulhar só por mexer o rato. Dificuldades iniciais ultrapassadas participou Quéo um computadô para mim.

insectífero

O pai apareceu-lhe com uma "coisa" para ver insectos. Um observatório, corrigiu-me ele. Apanham-se com uma pinça, enfiam-se lá dentro, aquilo aumenta-lhes as patas, asas e olhos, vêem-se muito bem vistos, devolvem-se ao ar da rua. Andamos num corropio de bichos-de-conta, moscas, abelhas, aranhas e outros inomináveis que já me fizeram engolir as queixas de ter um caracol (Não! É uma caroleta, não é um caracol!) a passear-se pela mesa da cozinha.
O miúdo aproveitou-se e pedinchou um micocóquio. Antes de o saber dizer perfeitamente já sabe o que é...

sábado, 10 de março de 2007

tem cuidado ó carolina que o simão não te larga


A incauta andava a passear-se pelo muro ao pé das tartarugas enquanto eu estendia roupa e ele tricicletava. Olha! Um caracol gigante! É uma caroleta! É uma caroleta!, uma gritaria de fazer doer os ouvidos e o juízo. Posso ficá com ela? Posso levá-la pa casa, ser o dono dela? Posso? Posso? Posso? Po favor?...A gritaria desalmada, eu até devia era escrever isto tudo em maiúsculas, a cabeça a começar a latejar-me, disse-lhe que sim para o silenciar. Posso chamá-lhe Carolina? É nome de pessoa mas não faz mal, pois não, mãe? Fica bem, não achas, mãe? Caroleta Carolina! É um nome bonito, não é, mãe? Uma verborreia ainda mais desenfreada do que a costumeira. Mais um bicho em casa, toca de arranjar frasco grande, Tens que a pôr dentro de alguma coisa, não a quero por aí a rastejar e a deixar viscosidades por todo o lado!, O que é ratejar? O que é vicosi... vicosides, mãe?, e eu a insistir E tens que lhe dar comida e tu é que tens que tratar dela, O que é que ela come? Eu tato, eu sou o dono dela, eu sou bom dono, e toca de arranjar folhinhas e ervinhas. Cheio de impaciências e excitações, não o achei capaz de mais do que dia e meio à volta de tamanha lentidão, Isto amanhã está farto e a caracoleta volta para o quintal. Enganei-me. Vai ver se já comeu. Põe-lhe mais comida. Vai ver se está a dormir. Faz-lhe festinhas. Anda com ela na mão, Já viste os olhinhos, mãe? Saiem! Já viste as ondinhas quando rateja? Dá-lhe beijinhos. Faz-lhe cócegas. Põe a voz fininha para monodialogar com ela. Leva o frasco para a mesa. E canta-lhe A saia da Carolina tem um lagato pintado... desafinadíssimo mas com a letra toda certinha. É a caroleta Carolina para aqui, a Carolina caroleta para ali. E eu, que tinha o discurso da liberdade e do mundo lá fora preparado, emudeci perante tanta calmaria e cuidado...

monstros de brincar


Não é só um livro. É um gatinho-menino desocupado em brincadeiras solitárias a barulhar monstros para chamar uma mamã-gata ocupada em arrumações de casa. É, portanto, um jogo, divertido de se contar e ainda mais divertido de se representar a seguir na cozinha, na sala, no quarto, na casa-de-banho... Gosto de lho reler, ele gosta de o ouvir e gostamos todos de o brincar.
Descobri a Kalandraka por acaso, numa Feira do Livro, e fiquei encantada com as estórias e com os desenhos. Lembro-me que gostei muito de todos os que folheei (e li, que fiquei lá um tempão...) mas relembro-me especialmente do Frederico, um ratinho que coleccionava raios de sol e do A que sabe a lua?, uma torre de animais até ao céu em tentativas de provas. Lindos. Estão na lista dos a-comprar-rapidamente.
O Gato Gui e os monstros, Rocío Martínez, Kalandraka

sexta-feira, 9 de março de 2007

e gostos


Pródigo em contradições, o meu filho põe-me a mesa para o almoço tão, mas tão direitinha que o pai, depois de o elogiar increduliza-se entredentes Não foi ele sózinho, pois não? Ajudaste, não?, mas entorta nos bolos. Farinha por fora da tijela, ovos na roupa, açúcar no chão, manteiga na bancada, Posso povar? Já posso povar? com saltos e gritos o tempo todo, Já tá? Já posso rapar a tijela? Já tá?, eufóricos e apressados. Nos coquinhos, receita tirada daqui, não houve excepções mas houve acréscimos, que forminhas de papel num instantinho são carrinhos, camas de bonecos, casas de legos e pratos. Desajudou, divertiu-se e devorou-os. Mãe, eu adoro estes coquinhos. Mãe, temos que fazê mais. Sai à mãe, conclusa o pai, na direitice das organizações e no gosto por côco.

desgostos

Mãe, fizeste hambúguer para o almoço?
Não, querido, fiz peixe cozido. Com ovo e batatas e cenouras e brócolos e...
Oh não! Ahn... ahn... ahn...
... gritos crús.

quinta-feira, 8 de março de 2007

nas águas-furtadas


Nas até demais que se seguiram à primeira, nunca mais tive um. Com muita pena minha. Um sotão é um sítio muito especial, cheio de segredos para descobrir, respostas para encontrar, magias para brincar. Tenho pensado que já que não tenho o real devia fazer um virtual, aqui ao cimo das escadas do lado direito. Assim como este, onde vou muitas vezes rebuscar letras e números e animais e desenhos para pintar e colar e rir com o meu filho. Falta-me sempre o tempo para arrumar as prateleiras e baús que lá gostava de guardar. Ou talvez, sem eu o ter percebido ainda, já aqui tenha um sotão das nossas vidas...

quarta-feira, 7 de março de 2007

o amor assobiando nas gruas


As paixões garrafais exibidas ao mundo em frente à ébê e ao escorrega amarelo recordaram-me o (infelizmente) único livro que li no primeiro ano de vida do meu filho.

terça-feira, 6 de março de 2007

... e enlista

A mim, acrescenta-me palavreado às listas das compras magnetizadas no frigorífico. Imita a minha letra e muda bifes para bofes, côco para cócó, tira o érretêé do espadarte, lista tolices como areia e narizes no meio de farinha e toalhetes e iogurtes. Ingénua e apressada, esbarro no meio do supermercado em hesitações Ahn? O que é que escrevi aqui?, e depois, como o miúdo, gargalho os enganos.
O pai é muito mais divertido do que eu a fazer listas de supermercado!

pai encanta

Nos revezamentos, o pai, que também não esconde os dramas, troca-lhe as voltas nos livros já relidos. Põe as palavras em alegres brincadeiras e transforma a hora do conto num jogo de apanhada. Lê urso em vez de girafa, comer em vez de dormir, avião em vez de carro, maluco em vez de triste, saturno em vez de lua. Uma estória inteira em trocas e fugidas. O miúdo ri à gargalhada e corrige aos gritos. Não! Giafa! Não, não! Domiu! Não! É carro, é carro, não é avião! Maluco! Ah, não é maluco, é tite! Lua! Lua! É lua! Enganáste-me, pai, enganáste-me! E ri, ri, ri, até às lágrimas e aos soluços. Depois dos beijinhos, dos Dorme bem e dos Góto muito de ti pai e mãe ainda o ouvimos lá no escuro a gargalhar Usso! O pai disse usso! Satuno! Ai, satuno...
O pai é muito mais divertido a contar estórias do que eu!

mãe conta

Sou mais vezes eu, É a mãe, é a mãe a contá a tóia. Escolhe ele o livro. Raramente são vários, é o mesmo, lido duas vezes (depende...) à tarde e três à noite (depende... do tamanho, do tempo que me falta, do tardio da hora). Mais contos a horas de almoço e jantar, alguns meios de manhãs e tardes, ao fim do dia já lhes perdi a conta, aos contos e às cantorias. Os livlos de que gosta muito ou que não entende logo chegam a repetir-se quatro ou cinco dias, os mais fininhos ou com que não engraça tanto duram um, um e meio. E pergunta, pergunta muita coisa, pergunta tudo. Letras, palavras, significados O que é envegonhada?, porquês, pontos de interrogação, vírgulas. E reconhece os números das páginas e conta as ovelhas e os carros e as flores e os elefantes. E no fim o livlo, amigo, dorme debaixo da almofada, partilha sonos e sonhos.
Não lhe aligeiro, os dramas. Não escondo a violência, não mudo finais, não transformo os pretos em cinzentos clarinhos. Sim, morreu. Sim, a madrasta queria matá-la. Sim, a mãe tinha morrido. Sim, o lobo (a quantidade de lobos que há nos contos!) era mau, comeu-a mesmo. Desejo-lhe uma vida clara e recta, mas o mais certo é aparecerem-lhe curvas e contracurvas ao longo da estrada. Às vezes já lhe noto os pequenos tropeços nas lombas e as hesitações nos desvios. As voltas dos contos ajudam-no a perceber os empecilhos nos caminhos e que é preciso contorná-los e evitar os acidentes para continuar sempre a andar. Quando googlei confirmei aqui e aqui e aqui o que já fazia.
Só houve uma vez. Uminha só, em que não consegui. A malfadada frase dos aportuguesados João e Maria dos Hansel e Gretel (nomes bons para os miúdos ficarem de línguas enroladas nos éles), O pai era tão pobre, mas tão pobre, que decidiu abandonar os filhos na floresta, não me saíu. Que maldade. Então e os depois, quando eu me queixar que não tenho dinheiro ou que alguma coisa é cara, o miúdo ainda se põe a cogitar que o vou abandonar... Troquei para perdidos, Perderam-se do pai, e aproveitei para as moralizações do não se afastar muito e ter cuidado com estranhos e mais bláblás do género. Foi a única vez que fiz um atalho num conto...

segunda-feira, 5 de março de 2007

de todos os dias

Vivo descalendarizada. A ausência de um nove às cinco ou de um dez às sete ou de qualquer outra combinação horária faz com que quarta ou sábado seja a mesma coisa. Antes ainda me regia pelas impossibilidades dominicais de pagamentos e compras (ó terrinha pequena...) mas os débitos directos e os on-lines e um hiper a meia hora de carro contribuiram ainda mais para a baralhação. Nunca sei muito bem que dia é hoje. Quer dizer, sei que é dia de pediatra ou de parque ou de compras ou de desenhos. O meu calendário não marca a sequência dos dias, marca os trabalhos e as brincadeiras. É que o meu filho, para além de estar em casa aos sábados, domingos e feriados, também cá está nos outros todos. Baralha os dias da semana, baralha-se com os meses e as estações do ano e baralha-me as organizações. Para diminuir as confusões, marco-nos horários e cumpro-nos rotinas. Almoço, sesta, banho e jantar a horas certas, televisão antes de comer, pinturas e plasticinas de manhã, compras a seguir, escorrega, baloiço e triciclo à tarde. Mais ou menos e não necessariamente por esta ordem, que não me sinto muito formiga e não acredito em militarismos rígidos e inflexíveis, nem na educação nem na vida. Apenas o suficiente para o miúdo se sentir estável, para eu ter horas minhas e para os inesperados serem excepções felizes.
Cumpro muito facilmente algumas destas repetições diárias, outras forço-me a cumprir. Acho que a que me agrada mais e a que me dá mais prazer rotinar é a estória antes de dormir. Falha-me a idade dos começos. Houve várias tentativas, sempre sem final feliz, porque ele não parava, não se calava, não ouvia, mexia nos livros, atirava-os ao ar, passava as páginas a correr... Eu, que me lembro sempre de mim com livros, desgostava-me um bocadinho com tanta desatenção e tanto desprazer, e insistia. Nisso acredito, nas insistências e paciências, na educação e na vida. Começou a acalmar-se, a ouvir com atenção e a pedir outa vez, mais uma vez, até ter que ser eu a argumentar com os muito tarde e os já passa tanto da hora de dormir. E aí ele pedinchou a estória também antes da sesta. Achei justo esse acrescento aos gestos diários, os era uma vez a embalar-lhe igualmente os sonhos da tarde. E merecido. Porque o meu filho, que tem tantas dificuldades nos sossegos e nos silêncios, fica atento e interessado, à tarde e à noite. E pede sempre mais uma vez. E diz Eu góto muito de livlos. E isso é mil vezes mais importante do que almoçar sempre à mesma hora ou saber que hoje é segunda-feira...

domingo, 4 de março de 2007

a lebre e a tartaruga

O pai, em tentativas de lhe moderar as aceleradas lebrices e de o motivar para perseverantes tartaruguices, conta-lhe a fábula (aqui em português). E a lebre tinha um bom faro. Sabes o que é, o faro? Claro! É onde fica a garagem gânde e o Jumbo!

sábado, 3 de março de 2007

estória do dia

Era uma vez um licóptero que vivia muito tite poque não tinha onde morar. Pocurou, pocurou e encontou uma bonita casinha amarelinha. Foi domir feliz. Ponto, acabou. Foi uma bela tóia.
Curtinha mas coesa.

sexta-feira, 2 de março de 2007

hiperbólico

Quase em simultâneo passa das ternuras exageradas para as maldades também exageradas. Primeiro chama-lhes menina gatinha e querida bobinha, diz-me cinquenta vezes por dia eu góto tanto de ti e dá-me beijinhos ao outo (na boca), dá abacinhos gúúú (muito apertados e sonorizados com um gúúú) e beijinhos na bochechinha ao pai, fala com toda a gente na rua, incomoda miúdos e graúdos desconhecidos com mimos despropositados. E no segundo a seguir, sem qualquer motivo aparente, puxa o pêlo e o rabo da gata que está imóvel ao sol, dá pontapés à cadela que dorme sossegadíssima no tapete da sala, responde-me com maus modos, Túpida, túpida, enfurecido, levanta a mão para o pai Tu potáste muito mal, vou-te dar uma palmada, distribui cabeçadas e empurrões e dentadas em casa e nos escorregas, atira com portas e com brinquedos e com sapatos. Ralho, ralho muito, e falo, e explico, e apelo aos afectos que estavam lá no minuto anterior, e ponho de castigo e quando se me acabam os argumentos e as paciências ameaço e dou umas palmadas. Não gosto e não acho certo nem bom exemplo, mas dou. Que o exagero às vezes é tanto, mas tanto, tanto, tanto, que eu até já dei por mim a googlar bipolaridades e ciclotímias, desconfiada da sanidade total da criança. E também já me ouvi em desabafos como Se ele não fosse tão agressivo... e Mas porque é que este miúdo não é mais calmo?!? e Porque é que tens que exagerar tanto, filho?!. E culpo-me, culpo-me muito, por dizer e pensar estas coisas, que o desejo de mudança de um filho implica sempre rejeição e eu não quero rejeitá-lo nem que ele se sinta rejeitado... Mas este meu filho (às vezes) é tão difícil...
E sei, claro, que os miúdos são agressivos. Que muitos são. Passei a primária a vê-los pegar-se à pancada e levar pontos nos sangues das pedradas. Passei o ciclo a vê-los arrancar rabos a lagartixas e patas a carochas. De cada vez que escolho brinquedos incomoda-me a quantidade de espadas e pistolas e hiperheróis musculados que repõem a calma e o certo com murros e guerras e superpoderes mortíferos. E a violência pulula pelos imaginários infantis, desde madrastas que matam a pais que abandonam miúdos na floresta e a paus atirados a gatos. Sei isso tudo. Mas mesmo assim, racionalizando todas estas atenuantes, não consigo deixar de me sentir um bocadinho triste (e também culpada por esta tristeza) com os pequenos despropósitos diários...

quinta-feira, 1 de março de 2007

quem sai aos seus


Depois foram chegando mais, cada vez mais. A tartaruga, que tem os mesmos anos que a gata, o cágado apanhado pequenino na ribeira, os peixes, a cadela, as galinhas, mais uma tartaruga... Às vezes penso que não me importava mesmo nada de morar numa quinta deserta de vizinhos, usar botas de borracha até ao joelho, criar ovelhas, plantar árvores e filhos, mas hoje não me apetece escrever sobre as minhas vontades campestres. O meu filho já nasceu para uma casa cheia de bichos. As minhas primeiras preocupações eram com pêlos e alergias e doenças e higienes. A pediatra do hospital que lhe deu alta, bem-disposta com estas dúvidas incomuns numa recém-mamã, entre sorrisos, vaticinou-lhe uma valente alergia de pele logo nos primeiros dias e depois uma vidinha saudável sem reacções a nada. Até agora cumpriu-se. Com uma semana encheu-se de borbulhinhas e mais borbulhinhas que só se foram com tempo e Cicalfate e, até hoje, não alergizou mais nada. Fui desistindo de me preocupar com os pêlos nas mãos e na boca, com as sujidades, com os germes e as lombrigas e as carraças. É como se diz, o que não mata (no caso dele nem sequer) engorda...

Acho que lhe faz bem, crescer assim, rodeado de animais. Perceber que são frágeis, que dependem dos donos e que por isso tem que os tratar bem. Ir ganhando, pouco a pouco, pequenas responsabilidades diárias não só com ele - pôr trigo às galinhas, ver se a gata tem água, ajudar a escovar a cadela. Sentir a retribuição afectiva por todos estes pequenos gestos.

Se calhar é por isso, por ter tantos em casa e por (já) ajudar a cuidar deles, que o miúdo gosta tanto de animais. Carrega com joaninhas e bichos de conta e formigas cá para dentro, enfia-os em garrafas de plástico, dá-lhes ervinhas, quase chora quando lhe peço para os devolver à liberdade, Voa voa joaninha que o teu pai tá em liboa. Reconhece insectos como alfaiates e libelinhas e abelhões. Já viu nascer um pinto (e no dia de anos dele, feliz coincidência!). Tem um saco cheio de conchas de caracóis que vão sendo à vez carga de camiões e terra para escavadoras. Apanha carochas na praia. Já viu a tartaruga fazer uma cova na terra e pôr lá ovos. Quer saber o nome de todos os peixes. Entra em todas as lojas de animais e pedincha mais cães e iguanas e hamsters. Vê com uma invulgar atenção aquelas séries de vida selvagem e insectos e baleias. Tenta agarrar-se a todos os cães e gatos da rua. Diz Oh mãe, eu gotava tanto de morar numa quinta no campo. E estar a cinco centímetros dos rugidos e da juba de um leão não o deixa minimamente assustado...