segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

fim

Não me entusiasmam grandes vontades de balançar o que está a preteritar. Reparo, aliás, que não o tenho feito, nos trinta e uns recentes, o que se calhar me teria trazido menos enevoamentos no seguinte. Um quatro cinzento escuro. Mais um cinco e um seis cinzentos mornos. Igual a um sete com poucos claros. E eu antes até engraçava com o sete, presumia-lhe uma certa magia e uma certa boa-aventurança quando me cruzava com ele em moradas ou idades ou datas. Mas desta vez o sete desencantou-me e foi, acima de tudo, um constatar do desnorteamento do caminho. Explicaria o meu filho, grande fã das brincadeiras a quatro rodas, muito melhor o des-situamento do que eu: um carro - grandinho, assim familiar - vem andando andando por uma estrada e encontra um muro. Olha, não tem saída. Tem que fazer marcha atrás. Em retrocesso. Foi assim que passei mais de metade do sete e é asssim que me inicio no oito. À procura do cruzamento, lá atrás, onde escolhi errado. E não é simples, tentarem desfazer-se tais curvas em ruas que deviam ser mais rectas, mais arejadas, sobretudo mais verdes, que eu gosto muito de árvores.

Mesmo assim, com começos enleados, armazeno esperanças para o oito. Receios também, que sei das pendências e dos muitos passos que ainda me distanciam de uma estrada menos estreita. Mas eu gosto do oito. Redondo, duplamente esférico, que sempre o manuscritei com as duas bolinhas muito grávidas. Eu fazia muitos oitos ao meu miúdo quando ele não simpatizava com os rabiscamentos e se ficava pelos pedidos senhos, mamã, fá senhos. E eu redondava oitos. Oitos que se transformavam em gatos. Oitos que se transformavam em senhores. Oitos que se transformavam em centopeias. Oitos que se transformavam em árvores. E ele ria, feliz com os oitos mágicos.

Dois. Zero. Zero. Oito. Todos redondos. E bonificados com vinte e quatro horas extra. Assacava-lhes azarices, a minha avó Rita, aos bissextos, e, assim quase em jeito de corroboração, desalentou-se de respirar num de trezentos e sessenta e seis dias. Lembro-lhe as crenças mas desimporto-as, que não quero entrar amargurada com o pensamento esquerdo. Esperanço-me com o oito. Oito direitinho. Oito verde. Oito mágico.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

e com o coração aos saltos

Pedi-lhe silêncios com o pai nestes dias. Expliquei-lhe dos trabalhos, muitos trabalhos esta semana e como um Parti o braço telefonado a muitos quilómetros soa pior do que é. Prometi-lhe o domingo, Contamos só no domingo à noite, está bem, querido? Está bem mamã, eu hoje ao telefone digo-lhe que só no domingo é que lhe vou contar que parti o osso. É assim o meu filho. Não amua, grita a rir Estou aqui! Vá, encontra-me! assim que ouve o Prontos ou não aí vou eu e não sabe guardar um segredo.

Sonhador, desastrado e impaciente. Tão lindo.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Apareceu-me enquanto escrevia uma expressão do António Lobo Antunes no Memória de Elefante, o primeiro que li e que me deixou perdida de vontades de lhe ler os outros todos. Nascer sem bússola, dizia ele que tinha nascido sem bússola.

Se calhar devia comprar uma ao meu miúdo...

, com os pés onde calha

Eu até não percebo como é que não estava já preparada, que o miúdo sempre se ensarilhou muito com os espaços. Mas achei que eram descoordenações dos primeiros anos e que as maturidades dos crescimentos, para além de calmas, lhe trariam motricidades menos desajeitadas. Enganei-me. As desorientações não são defeito, são feitio.

Nos primeiros colos atirava-se, atirava a cabeça, atirava os braços, atirava as pernas, atirava o corpo todo. Cruzava-se a meio com esquinas ou portas ou prateleiras ou paredes ou joelhos ou cabeças nossas. Nos gatinhamentos cabeçou todos os obstáculos que encontrava pelo caminho até eu desistir de contabilizar nódoas negras e arranhões e marcas vermelhas. E o bipedismo atirou-o de vez contra todas as esquinas e todos os cantos aguçados e todos os puxadores de portas e gavetas. Ainda me sobram cantos emborrachados em sítios inimagináveis. E continua a desencaminhar-se. Anda de bicicleta a olhar para trás. Corre a contar nuvens até abalroar postes de luz ou caixotes do lixo ou carros mal estacionados. Atravessa a rua a correr sem espreitar antes para esquerdas e direitas. Pára no meio da passadeira porque há uma pedrinha linda e redondinha que parece a lua mesmo ali no meio da risca branca. Esbarra sempre na esquina da mesa da cozinha e na barra do fundo da cama dele e no puxador da porta da cozinha e no ferro da minha cama. Chora, grita que lhe doeu muito, soma pequeninas cicatrizes mas continua a preferir os caminhos tortos. Quase sempre.

É um desastrado, portanto. Sonhador e desastrado.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

com a cabeça nas nuvens

Desperdiço-me nos comos, nos porquês, nos quandos. Se alguém o empurrou, se ele empurrou alguém. Se estava de pé, se estava de joelhos, se ía de barriga para baixo. Se passou por cima do da frente, se íam outros a subir. Primeiro não se lembra. Depois espanta-me com uma girafa. Eu estava a ver a sombra, mamã, a sombra do escorrega no chão. É gira, é muito gira, parece mesmo uma girafa. E depois eu pensei que era um pássaro e que estava a voar para a cabeça da girafa. E depois voei e caí no chão. Não sei como foi.

Andei eu quatro anos a apregoar as nossas grandes desparecenças para afinal me crescer aqui um sonhador...

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Eu voei de um escorrega altíssimo e parti o rádio, surpreende ele quem lhe pergunta pelo sucedido com o superlativo absoluto sintético e com os conhecimentos de anatomia.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

mãe com medo

Metade de mim vai-me repetindo que é normal. Caem, magoam-se, partem-se, recuperam. São assim, os miúdos são assim. Não vale a pena ter medos tolos, quem caminha pode cair. Encerra o assunto, diz-me a metade de mim que quer pensar limpidamente nas coisas.
A outra metade de mim fecha os olhos e revê-o a cair. A bata nova aos quadradinhos onde cosi o nome no fim-de-semana passado, o casaco castanho com o capuz laranja, gosto tanto de o ver de cor-de-laranja, as calças com os joelhos sempre encardidos, tudo a vir por ali abaixo e a desabar em cima do pulso e da mão. A outra metade de mim não consegue parar de vê-lo a cair.

Pergunto-me se teria sido mais fácil ouvir do outro lado do telefone O seu filho caiu, está cheio de dores, vamos com ele para o hospital.
Pergunto-me se vou perder o medo de o deixar lá, na escolinha amarela.

domingo, 9 de dezembro de 2007

simão sem medo

E depois foi tão, mas tão valente. Ele, que sonoriza ais doridos em volumes inconcebíveis para lavar o cabelo e para cortar as unhas e para deixar o otorrino iluminar-lhe os ouvidos, minúsculo na cadeira de rodas dos crescidos, a esticar sem receios e sem queixas o braço para os raios-xis e a bombardear a enfermeira com porquês. Se aquilo era uma máquina fotográfica gigante, se depois a ligavam por um fio ao computador para ver as fotografias, para que serviam os tubos e os botões. Borracho, chamou-lhe ela. No meio das urgências de ortopedia, com velhos acamados e esquecidos pelos corredores, enfermeiros de ares apressados e desinteressados, bombeiros a prioritarem acidentados pelo meio das esperas, ela respondeu-lhe às curiosidades e chamou-lhe borracho. E depois o médico, novo, novinho, sossegou-me. Que é uma fractura pequena, tão pequenina que na radiografia que lhe vai deixar prescrita para os seis nem uns restos se vão vislumbrar. E pôs-lhe o gesso, a explicar-lhe procedimentos e tesouras curvas e ossos e ainda lhe ofereceu no fim umas luvas e um rolo de ligadura. Para brincares aos médicos lá em casa, tu queres ser médico quando cresceres? Não, eu vou conduzir um eléctrico daqueles modernos, é só com botões, é mais fácil. Simpático, o médico novinho. E disse-me que ele teve sorte. Que podia ter sido a cabeça, a clavícula, ou um úmero ou tíbia ou fêmur que podia exigir operações posteriores para voltar a funcionar. Que todos os dias, mas mesmo todos os dias, lá chegam miúdos magoados nos escorregas e nos baloiços dos infantários. Que as pessoas não imaginam as gravidades e os riscos. Que devia ser proibido, escorregas e baloiços nas escolas. Não me sossegou. Apreensou-me ainda mais.
Mas foi tão valente, o meu menino. Encolhido na cadeira de rodas dos crescidos no corredor desolado de braço encostado ao peito Não chores mamã, que quando não mexo não me dói.

sábado, 8 de dezembro de 2007


sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

casa roubada

Acho que, no fim de tudo, o que me importuna mais é mesmo a concessão. O Está bem, só mais cinco minutos respondido indolentemente ao Posso brincar mais um bocadinho? A meio das correrias e enervamentos subsequentes parece-me que ainda lhe inapropriei um Nunca mais me pedes para lá ficar nem mais um minuto. Ouviste? de dedo espetado na cara chorosa. Trancas atrasadas.

Isso e a falta de cuidados. Duas auxiliares e uma educadora a desperdiçarem atenções nas mochilas da natação e nas autorizações para o circo e nenhuma de olho no escorrega. Alto. Que eu já tinha pensado tantas vezes que aquilo é demasiado alto e que os vinte e seis miúdos esbarram selvaticamente uns nos outros nas subidas aceleradas e nas descidas descuidadas. E desde que vi um aterrar a cabeça na borracha gasta do chão e chorá-la mais de meia-hora ainda o achava mais alto.

De qualquer maneira não esperava vê-lo voar. A bata nova aos quadradinhos onde cosi o nome no fim-de-semana passado, o casaco castanho com o capuz laranja, gosto tanto de o ver de cor-de-laranja, as calças com os joelhos sempre encardidos, tudo a vir por ali abaixo e a desabar em cima do pulso e da mão. Tão pequeninos, o pulso e a mão. Tão pequenino, ainda, o meu menino. Só não tive tempo de presumir desventuras maiores enquanto velocidava o pátio porque os gritos estridentes me atalharam logo as imaginações.

E não esperava tê-lo com um braço engordado e imobilizado com gesso e ligaduras durante um mês. Isso é que não esperava mesmo...