quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

das duas

Entre as vogais audíveis de uma e os abanares de rabo contáveis da outra, contou-me das opiniões da Luísa. Que da grande ou foi magoamento ou qualquer coisa hormonal, deve passar sózinho, o redondo. Que da pequena são quistos, acelerados a mais para o gosto dela. Engole um comprimido branco durante sete dias, se não passar biopsam-se e excluem-se.

Ignorei a última parte. Há palavras amargas que deviam andar sempre longe de quem gostamos. Uma está boa, a outra vai estar. Vai correr tudo bem, repito-nos. Vai correr tudo bem, repito-me. E amanhã de manhã já cá estão.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

com fome

Já vinha a repará-la desde a subida, que o nem o miúdo perde os hábitos de espreitar nuvens nem eu os de espreitar janelas e varandas. Cabeças no ar, ele a perguntar, eu a esquecer-me de responder. A invejar-lhe os pés descalços ao sol, a palha primaveril na cabeça, o livro no colo, o descanso na varanda. E a descontabilizar anos de preguiçamentos. Aos tempos que não esplanado, que não revisto futilidades, que não me afundo na banheira cheia, que não leio sem sono, que sou interrompida em tudo pelos Mãe! Mamã! Mamã, responde-me! A cobiçar-lhe a folga. Quando de repente ela levantou os olhos do livro e nos encarou. O miúdo embatado aos solavancos na minha mão, a urgência de não chegar depois das nove, a cantoria O coelho Alberto disse ao neto que é perigoso andar a passear com a mão livre a dentar feita crocodilo. E era capaz de jurar que a percebi a descontabilizar passados e a invejar-nos. Pode ter sido só impressão minha. Mas era capaz de jurar. Sorrimo-nos. Ela voltou ao livro, eu apressei-me, ele continuou Passo a passo o crocodilo avança, abre a boca...

Tonta. Queixo-me de barriga cheia.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

mesa para dois

Domingo ao fim da tarde. Eu rolo a massa para a tarte de frango, ele pinta a galinha meg. Coexistimos sempre na cozinha na hora dos preparos.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

respostas gasosas

Voltámos para casa a partilhar desilusões. Ele, especialmente, arrastou indignações pela relva. Mas não puseram nenhuma nave espacial nem nenhum foguetão. E não mostraram os planetas! E assim não sei nada sobre o sol e a lua e as galáxias... É que as expectativas já cresciam de há umas semanas para cá. Um destes domingos de manhã vamos ao planetário ver a sessão para meninos, fui-lhe prometendo. Os porquês recentes propiciaram a ocasião. Prometi-lhe um céu estrelado, planetas e constelações e esperava, claro, ensinamentos a fingirem-se brincadeiras, a melhor maneira de explicar a entreter meninos menorzinhos e maiorzinhos. Em vez disso ganhámos monotonias. Cinquenta minutos com estrelas paradas lá em cima, uma voz a aular como identificar a estrela polar e a constelação da ursa maior, uma música psicadélica e uma trovoada final assustadora. Uma sala cheia que nos inícios teve Ahs! maravilhados e silêncios recebeu logo a seguir remeximentos, levantares, tentativas de brincadeiras e desatenções.
Desaconselho. Acho que até para os crescidos...

domingo, 27 de janeiro de 2008

respostas sólidas

A seguir ao Júpiter vem o...
Saturno. É o que tem anéis.
Pois é, muito bem! Depois vem o Urano, a seguir o...
Neptuno?
Sim, e no fim de todos vem o...
Anão! O planeta anão!

Intuitivo, o puto é intuitivo.

perguntas líquidas

Primeiro pedi-lhe com jeitinho. Depois pedi-lhe sem jeitinho. Depois expliquei-lhe como me sabe bem alongar-me ali, sózinha e sossegada e calada, com os calores da água a despreguiçarem-me frios e sonos. Depois implorei. Depois prescrevi um Vai ver desenhos ou vai brincar para o teu quarto! tão ralhado que ecoou mais castigo que sugestão. Depois desisti. Fica-se sempre por ali, a fazer voar aviões ou a fazer rodar carrinhos e a falar, enquanto eu me vou esquentando e surdando porquês e comos e replicando huns e sins ao calhas. Ontem, depois de se ter repetido várias vezes em palavras que o champô a descair pelos ouvidos me ajudou a desconhecer, afastou a cortina em exigências zangadas Oh mãe, já te disse umas seis vezes! Tu tens que me explicar o sistema solar!

Acho que vou começar a fechar a porta à chave.

sábado, 26 de janeiro de 2008

arroxeadas

Gosto de papoilas e de margaridas e de malmequeres e de girassóis e de gerberas e de violetas e de tulipas e de narcisos. Forço-me a gostar de rosas por causa do Principezinho.
Não gosto de estrelícias nem de orquídeas nem de gladíolos nem de lírios nem de açucenas nem de begónias nem de peónias. Não gosto de flores aprimoradas, requintadas, confusas. Não gosto de não-flores.

Mas todos os dias sorrio feliz quando descubro mais uma arroxeada a despentear-se-me na janela. Flores-de-filho, gosto muito de flores-de-filho.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

já-roxas

Olha mamã, eu fiz um abracadabra e agora são já-flores!

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

sem uma e sem a outra

É que nem a ausência dos incómodos me aligeira as saudades. Prossigo tarefando os costumes de todos os dias deslembrada dos arredamentos. Aspiro um chão invulgarmente despovoado de pêlos. Antecipo-me aos ruídos desagradáveis do despertador inquietada com os tempos para a levar à rua. Esbanjo água na tijela azul. Esvazio o prato da última batata na tijela amarela. Origamo o saquinho das maçãs e o saquinho das cenouras e o saquinho das quatro bolinhas na bolsa verde velcrada à trela. Desassossego-me com a carência de cocós nas pedras. Carrego-me com seis quilos de ração e com cinco quilos de absorvente no meio de cereais, guardanapos e esparguete. Estranho-me a meio da noite quando não forço um peso ao esquerdar as pernas. Esqueço-me que não estão.

Eu ainda perguntei talvez a uma meia dúzia de acompanhantes de cães por veterinários aqui na cidade grande mas os euros e sobretudo os desinteresses e descuidos das respostas fizeram-me preferir as de sempre, a trezentos e muitos quilómetros e numa língua diferente, mas que as conhecem melhor por dentro do que eu. E que lhes lembram os nomes. E que lhes chamam bonita. Bonita, ciciava-lhe a Luísa enquanto lhe tentava esgotar podridões na barriga infectada. Nunca mais me esqueci, do doce na voz dela. Nem da barriga.

Justifiquei-lhe as descomparências. Expliquei-lhe operações passadas e caroços presentes. Este primeiro da cadela, sustado uma tarde destas ao escová-la nas relvas. E os muitos da gata, os da barriga repetentes, os pequenos e velozes do resto do corpo caloiros. Distraíu-se das tristezas com o ir levá-las ao carro a desoras e já empijamado mas quando abrimos a porta para uma casa vazia, desabitada, inóspita chorou-as aflito. Mas porquê? Eu gosto tanto delas. Eu não quero que elas estejam doentes. Eu não quero que elas morram. É melhor tu dares-me um colo... Calei-lhe as lágimas gordas com promessas de saúde e vida longa, zangada com o descontrolar os tempos de vida de quem amo. Vai correr tudo bem, repeti-lhe muitas vezes. A sossegá-lo. A sossegar-me.

Lavo-lhes e arejo-lhes as camas. Vazo pedras novas no tabuleiro. Compro as latinhas preferidas. Arrumo o osso, a corda, a lã cor-de-rosa, a bolinha no cesto dos brinquedos. Espero-as. Na esperança de prosseguir tarefando os costumes de todos os dias durante muitos anos.

Vai correr tudo bem.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

a outra

Sobre a outra, mais reduzida em dimensões mas mais aumentada em anos, é que reparo que quase nada me alongo por aqui. Penso, muitas vezes, que tenho que a escrever, e fico estranhamente despalavrada. Sobram-me muitas imagens, que a pequena é fotogénica, mas escasseiam-me os discursos.

E no entanto há tantas miudezas de todos os dias que me apetece frasear. Como se tem indo extraviando o Tai, nome primeiro, e como tem ganho uma série deles com o andar dos tempos e das intimidades. Maria Gata. Menina Gatinha. Gata Suricata (por os semelhar no ficar de pé para acolher festinhas). Gata. É, muitas vezes, a Gata. Viste a Gata? Já deste comida à Gata? Gata Gatota, Gatotinha, Gatoca, Gatoquinha, lengalenga ele para ela. Como é faladora. Fala tanto, desde gatinha, que toda a gente que vem cá a casa se desprevine com as vogais certinhas nas palavras. Ião para Simão, ãos zangados para as escovadelas desembaraçantes de nós nos pêlos, éo para quero comida. Adoptámos-lhe alguns discursos. Sou eu, sou eu a dar-lhe o éo, grita-me o miúdo zangado quando o despromovo do encargo a seguir ao jantar. Intuitiva, orienta a cabeça para o telefone uns segundos antes do som, bate-me com a almofadinha na cara mesmo antes do despertador me estorvar os sonhos. Salta-me para o colo assim que me sento. Sopesa-se-me nas pernas a maior parte das vezes que aqui escrevo.Dorme comigo. Eu, que em miúda pensava que desengraçava com gatos, tenho uma sempre a aquecer-me as noites. No verão fora, no inverno dentro. Quando o miúdo cá morava e crescia ela ronronava para as agitações da barriga. E nunca produziu ciúmes pelos que foram chegando, nem quando ele, bebé, ocupava todos os tempos, todos os colos e todos os silêncios.

Há gestos que se rotinam há quase doze anos e que continuam a pôr-me em sorrisos. O esquecer-se da língua de fora quando suspende as lambidelas. O corpo imóvel com as orelhas a cataventarem a imensidão de minúsculos ruídos da casa e da rua. Os olhos redondos de susto. As posições contorcionadas para se aproximar de pêlos fora de língua. O morder e agarrar a lã cor-de-rosa com que o miúdo lhe atrapalha os sonos na janela. O correr atrás e futebolar a bolinha branca que nos pingue-pongueia ligeira e sonoramente a casa toda. O saltar para a cama dele na hora das estórias da noite. Os ronronares. Os ronronares tão perseverantes.

Não me imagino sem ela. Não nos imagino sem ela.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Os melhores amigos.
Antes do oito e do desengessamento.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

uma

Apercebo-me que tenho poupado nas palavras e nas imagens delas aqui pela caixa. Um despropósito, ralho-me, este desintencional preterir para secundário quem tanto divide connosco casa e dias. Corrijo-me a partir daqui e prometo-me exibi-las cá dentro nos mesmos papéis principais que ocupam na nossa história cá de fora.

Se calhar, mesmo assim, a grande é capaz de se achar mais vezes nas narrativas que a pequena, não por desmerecimento da segunda mas por não gostar de se exteriorizar. A cadela quase todas as manhãs se encaminha connosco para a escolinha amarela e quase todas as tardes se velocida pelas relvas com ele nos retornos a casa. Perguntam certas mães se a escola agora tem um cão quando a presenciam em pacientes atrelamentos ao corrimão da entrada enquanto abotoo a bata e confirmo sopa, segundo prato e fruta. E depois há os parques e os passeios e os jardins e a beira-rio em que ela involuntariamente se protagoniza. Oh mãe, olha o cão daquele menino! Posso fazer uma festinha? De que raça é? Que lindo! Morde? Eu também tenho um cão desses. Cão, chamam-lhe sempre cão. Enfado-me, enfadamo-nos, às vezes, com tanta paragem para diálogos, e apetece-me azedar as respostas com as desimportâncias da raça e das bonitezas a quem me expõe vontades de filhotes pedigrados e elevar os interiores Ela é muito, muito, muito boazinha, e isso é o melhor num cão, sobretudo com miúdos pequenos em casa. Mas já contabilizo pelo menos duas amigas a crescerem (tempo, a amizade precisa quase sempre de tempo...) às contas de palavreamentos sobre cios e trelas e veterinários e rações. E o miúdo tem-se adoçado mais, com ela, e tem-se separado de puxões de rabo e de orelhas, dedos nos olhos e arrancares de pêlos. Escova-a, farta-lhe as tijelas de água e comida, resta-lhe os últimos bocadinhos de arroz e de carne, atira-lhe a bola, encontra-lhe troncos e pinhas, faz-lhe festas, dá-lhe beijinhos e chama-lhe minha querida. Minha querida. É tão bonito, quando lhe diz minha querida.

Avança sem irmãos (ainda, falhou-me ali o ainda antes do sem) mas com cadela. Cadela-amiga. Cadela-quase irmã. Não o imagino a crescer sem ela. Não nos imagino sem ela.

domingo, 20 de janeiro de 2008

quase doze

anos e continuo a encontrar-lhe os jeitos de gatinha.

sábado, 19 de janeiro de 2008

quase oito

anos e continuo a encontrar-lhe os jeitos de cachorrinha.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

palavras de cordel

Fronte. Verdugo. Pátria. Locupletar. Pústula. Visceral. Tumescência. Epifania. Tropel. Procrastinar. Hirsuto. Cônjuge. Abjecto. Transeunte. Postergar. Serôdio. Entranhas. Túrgido. Pujança. Bramir. Regaço.

Há palavras que nunca uso. Há palavras azedas, podres, mal-parecidas e mal-cheirosas. Há palavras que me fazem fechar livros e nunca mais os abrir. Há palavras que me dão vontade de fazer uma birra igual às do meu filho quando me aparecem no meio de um texto ou de um poema de que eu estava mesmo a gostar.

sábado, 12 de janeiro de 2008

quase-roxas

Sai com o pai e aparece-me com um ramo delas. Toma, mamã, são quase-flores.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

desengessado

Tão lindo por fora como por dentro.

sábado, 5 de janeiro de 2008

cadernada

Eu costumava habitar as folhas com umas letras bonitinhas. Magrinhas, esticadinhas, tão regulares as minhas palavras. Tranquilas. Agora atropelam-se, sempre em urgências pelo ponto final. Os is perdem os pontos, os émes esquecem-se da última perna, os tês prescindem do traço, os érres fingem que são us. Olho para estas palavras moças, incompletas, desregradas, informes, e não as reconheço como minhas. Não me reconheço. Eu não sou assim. Eu gosto mais de manuscritar do que de teclar. Eu gostava das minhas letrinhas magrinhas. Eu gostava de me sentir com mais vagares.

Comprei um caderno. No mesmo dia em que comprei a agenda. Lindo, o caderno, vermelho com flores pretas e brancas. Tão lindo que ainda não consegui parar de olhar para ele. Não faz parte das minhas resoluções mas o que eu espero mesmo é sobrecarregar-me com ele para todo o lado e escrever. Escrever muito. Com letras magrinhas, esticadinhas, vagarosas...

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

agendada

Devo ter agendado testes e frequências e trabalhos e notas pelo menos durante uns onze anos. Depois agendei matérias e planificações e reuniões e visitas-de-estudo e notas durante uns cinco. Depois agendei palavras pretensiosas. Certames. Eventos. Workshops. Não sei durante quantos e não me apetecem agora subtracções passadas. Mas a seguir agendei semanas de barriga. E depois desagendei-me. A carteira preencheu-se de folhinhas soltas, listas inúteis e incumpridas, cupões de desconto do supermercado e do gasóleo, marcações do pediatra, números de telefone, etiquetas de cartão das camisolas dele que apetece guardar por engraçar com os desenhos. Uma das resoluções para o que começa é retornar-me organizada. Comprei uma agenda. Ortografei-lhe os primeiros aniversários, as primeiras marcações e as primeiras moradas com aliviada satisfação. Levo-a para todo o lado.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

princípio

Se eu me decidisse a desperdiçar horas e euros num desses médicos que nos avalia as conversas e as infâncias e a seguir dá nome de enfermidade aos sermos e aos sentirmos, tenho quase a certeza que voltava de lá com um diagnóstico de um qualquer síndrome depressivo ou transtorno de personalidade ou perturbação regulatória de algum tipo pouco falado. E, claro, com uma receita de comprimidos para me entorpecerem os dias e aumentarem os sonhos. Como daquela vez, há muitos anos, em que precisei de um atestado e devo ter exagerado tanto nas desmotivações e nos desconsolos que o médico, sério e engravatado, me feriou três meses em casa e me prescreveu uns minúsculos círculos brancos que na bula me prometiam alegrar e desenervar os humores. Morreram na sanita, que eu desacredito nos anti-depressivos milagrosos, quase tanto como dasacredito que o risperdal desintroverta meninos autistas ou que a ritalina sossegue meninos hiperactivos. No auto-conhecimento, nisso acredito. E no direito à diferença. Timidezes. Euforias. Envergonhamentos. Exageros. Pudores. Pode alguém ser quem não é, canta o Sérgio Godinho. E (desen)canto eu às vezes ao miúdo, para que ele trepe centímetros com a certeza que pode (e se calhar até deve...) ser diferente.

Início demasiado palavroso, este, para escrever que não sou muito festeira. Não esbanjo risos. Deve ser concerteza algum modo de desfuncionamento, isto, que me leva a dizer favoritos os livros que me fazem chorar e os filmes que me afundam em nostalgias. Aguo-me muito, corridamente, demasiadamente, por nadas. Chata, sou muito chata.

As alegrias com hora marcada são-me especialmente custosas de gargalhar. Se os novos dias me entusiamam, os regozijos do zero desmotivam-me. Este ano cansei-me dos é costume fazer-se e desisti da descontagem, das engasgações com a saúde, felicidade, amor, dinheiro, e dos estilhaços velhos. Desacelerei-me dos ritmos que não me pertencem. E na primeira hora decidi doze mudanças que preciso reviravoltar neste ano que começa.

Ano novo, hábitos novos. Dias novos, vontades novas.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Se calhar eu é que tenho precisões de uma bússola...

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

"O bom do caminho é haver volta.
Para ida sem vinda basta o tempo."

Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, Mia Couto, Caminho