quarta-feira, 28 de julho de 2010

summertime 2



Às vezes é muito difícil permanecê-lo calado e sossegado enquanto o irmão dorme. Outras vezes é fácil.

terça-feira, 27 de julho de 2010

summertime 1






Os museus à noite são óptimos.

summertime

O interregno na escolaridade do maior descalendariza-me as semanas e dasatina-me os dias. Sem precisar de orientar sonos, banhos e refeições em função das nove e quinze e das três e meia e sem ter que ajudar a tpcs nos dias de semana e planear saídas nos fins-de-semana vamos sobrevivendo com os programas que melhor se nos encaixam neste verão quente de espera. Assim, e em muitos casos já alienados das datas em que aconteceram, inauguro por aqui o summertime, repertório mais ou menos fiel do que vamos fazendo e vendo nestes dias de férias.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

nomes

Andámos estes meses todos desencontrados com os nomes, que isto de serem dois de uma vez e de haver mais uma voz a discordar não facilita as decisões. Parece que finalmente, com cedências de todos os lados, lá chegámos a consensos.

diferenças

Levei sete anos a convencer o grande a mastigar saladas sem reclamar com a alface demasiado verde e o tomate demasiado azedo. Levei um ano e poucos meses a perceber que o pequeno adora comer saladas às mãos cheias a colorir a cara, os dedos, a cadeira e o chão de verdes e vermelhos.

domingo, 25 de julho de 2010

o homem que via passar os comboios.

Foi ontem. Reparei-o assim que chegámos ao jardim, que isto de agora sermos sempre os últimos a desamparar os sítios dispersa as multidões e destaca os solitários. Já deixei há muito de me apoquentar com as desrotinas e os deitares tarde dos miúdos, que um está de férias e o outro vive de férias. E é verão, os calores exageram-se, eu dificulto-me entre uma barriga que ouve o tempo todo Então, isso está mesmo quase, não é? e uns pés inchados e por isso reorganizamo-nos em função dos frescos e das sestas do pequeno. Mesmo que isso implique sobrecargas com jantares, prescindir do banho e chegar a casa às desoras a que no inverno já dormem com o pequeno já adormecido no carrinho. Por isso já o tinha avistado quando chegámos ao jardim, que já só sobravam menos de meia dúzia de tardios. Tínhamos acabado de bisar OsGemeos (tal como há uns tempos fizemos com a Joana) no meio de muita bateria ruidosa e teclagem desarmoniosa e de nos deliciar com o submarino e embora a lua já se arredondasse no céu ainda nos relvámos no meio das oliveiras para eu iogurtar e embolachar o pequeno enquanto o grande reconstruía as pedras do lago. E ele estava lá, sentado no muro, sózinho, fixo nos comboios. E, de repente, quando já nos abalávamos, carrinho mais trotinete mais mochila, Anda Simão que o mano já comeu e está a ficar tarde, o homem enfiou a cabeça nas mãos e desatou a chorar. Alto, muito alto, como não se está à espera que um homem crescido chore no meio de outras pessoas. Mamã, o que é que aquele senhor está a fazer? Parei. Vou lá ou não vou? Está a chorar, filho. Será que bebeu, que tomou alguma coisa, que é louco? Que mania de pejorarmos o desabitual. Deve ter algum problema. Vou lá ou não vou? Segura a trotinete e o carrinho do mano e não saias daqui. Ouviste? Não saias daqui. Desculpe... posso ajudá-lo? Uns cabelos ondulados já com brancos, um rosto harmonioso, uns olhos claros, bonitos. Pareceu-me, que já estava escuro mesmo com aquela lua grande e redonda no céu a aclarar tudo. Desculpe, posso ajudar nalguma coisa? Não, não, não, deixe-me sózinho. Outra vez a cabeça nas mãos e os soluços altos, sérios, tão desesperados. O que é que o senhor tinha, mamã? Está triste filho. Viemos embora, calados, com o choro a acompanhar-nos ainda um bocadinho do caminho. Eu não sabia que as pessoas crescidas também choram assim como os meninos. Choram sim, filho, as pessoas crescidas também choram como os meninos. Só que a maior parte das vezes choram para dentro, com vergonha que os vejam e oiçam.

Devia lá ter voltado. Devia ter-me sentado ao lado do homem que chorava com um pacote de lenços de papel e ter esperado. Ou então ter-lhe dito Não, não quer ficar sózinho, senão estava a chorar dentro de uma casa ou de um carro. E não se iluda com os miúdos, a barriga e este colorido alegre do vestido. Tenho dois filhos cá fora mais dois cá dentro para criar e estou a ter uma semana muito difícil. Por isso eu percebo e posso ajudar, que só não estou a chorar assim sonoro e desavergonhado porque tenho ali dois miúdos que precisam dos meus sorrisos e dos meus cuidados. E venha lá para a relva que este muro é demasiado alto. Devia lá ter voltado.

Ainda não consegui parar de pensar no homem que chorava.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

a minha família de antes

Uns dias antes eu começava a desassossegar-me na janela da cozinha. Não havia telefonemas nem cartas nem telegramas a prenunciar a vinda, que a minha avó iletrava os escritos e resistia a um telefone a inquietar-lhe os silêncios da casa, mas eu começava a esperá-la. A minha mãe, vigiadora atenta e feroz de todos os gestos e de todas as horas, convencia-se que eu atentava nos rapazes de calças de ganga rotas e ténis displicentes que pastoreavam os cadernos no regresso da Secundária Mas que tanto fazes tu aí à janela?, e tratava de me embaraçar com fichas de matemática, números em francês até cem e espanamentos das prateleiras da sala onde nunca ninguém podia entrar para estar limpa e arrumada para as visitas. Enganava-se muito, a minha mãe, que nos rapazes a única coisa que eu reparava era na liberdade de poder vagarar da escola até casa sem pressas e sem espionagens. E eu obedecia, que eu obedecia sempre, quando era pequena, submissa, calada e bem-comportada, e escrevia tudo certinho e com letras bonitas e ajudava a limpar a casa, mas continuava a sorrelfar espreitadelas para a esquina do prédio azul que me impedia as visões até ao fim da rua.

Geralmente ela chegava mesmo antes do almoço. Ou mesmo a seguir. O que deixava logo a minha mãe muito mal-disposta Então vossemecê vem assim sem avisar à hora do almoço e agora o que é que lhe arranjo para comer?. Nunca a ouvi chamar-lhe mãe. Era sempre vossemecê, palavra desusada e até desadequada para quem tinha estudos e obrigações de ensinar letras. Estranhamente eu estava sempre a olhar para a curva no momento em que lá se avolumavam os cabelos brancos e os passos vagarosos da minha avó. A avó chegou, anunciava à minha mãe, a esconder os contentamentos na voz e nos gestos para não a irritar ainda mais, e a demorar-me nas roupas cinzentas, que nunca mais se garriu de vermelhos e azuis e verdes desde que o óbito do marido a confinou a uma viuvez e desamparo precoces, nos dois sacos grandes de riscas abotoados com cordel azul, no chapéu na cabeça e na sombrinha geralmente aberta. Havia sempre uma sombrinha, como ela lhe chamava, nome que ainda hoje continua a fluir-me para os chapéus de chuva, e que dava muito jeito para todas as meteorologias mais para os possíveis ladrões. A minha avó chegava, com aquele cheiro a lavanda que combinei para sempre com as mulheres velhas e sózinhas, queixava-se do tempo e dos atrasos dos comboios, dava-me dois beijos parcos e dizia-me que eu estava grande e, se houvesse calores, demasiado queimada e com comprimentos a mais nos cabelos, actualizava com a minha mãe as novidades sobre conhecidos, vizinhos e parentes remotos, A Teresa vai casar., A avó da Felismina está muito mal, aquilo já não dura muito., Os filhos do João, vê lá tu, enfiaram-no num lar para velhos, coitado., e esventrava os sacos de riscas no quarto lá do fundo. Eu ficava a ver as roupas embrulhadas em lenços e panos e as carteiras e documentos protegidos por sacos de plástico, tudo a cheirar a lavanda, e esperava, sempre a pensar Será que ela se lembrou?, Será que ela se lembrou?, Será que ela se lembrou?. Finalmente do meio de tudo aquilo acabava por aparecer o embrulho de papel manteiga Toma lá uns bolinhos para ti, filha. Chamava-me tantas vezes filha, a minha avó, que morava mesmo encostadinha a uma fábrica de pão e bolos que perfumava os fins de tarde e noites com doçuras e apetites e que me trazia sempre dois bolos embrulhados naquele papel manteiga que agora assepticamente e infelizmente já ninguém usa para os comestíveis. E eu ficava muito contente, com o filha e com as lembranças e com os bolos. Um caracol, massa amarela e enroladinha repleta de canela e açúcar, que eu adorava, e um bolo rocha, creio que era o que ela lhe chamava, atestado de frutas cristalizadas, que eu detestava. Comia primeiro e depressa o das frutas, a desgostar aquela imensidão de quadradinhos verdes e vermelhos e amarelos e brancos e a seguir o de canela, muito devagarinho, na espera de que todo aquele açúcar me adoçasse os dedos, os interiores e os dias difíceis.

Nunca disse à minha avó que não gostava de frutas cristalizadas. Durante tantos anos esperei-a na janela da cozinha, senti-lhe o cheiro a lavanda, disse-lhe Obrigada Vó. ao pacote de papel manteiga e ao filha, mastiguei muito depressa os coloridos desagradáveis e muito devagar os castanhos açucarados e nunca lhe disse que não gostava de frutas cristalizadas. Uma tolice. Agora, tantos anos depois, acho que fiz muito mal. Devia ter dito à minha avó que não gostava de bolo rocha. Tal como devia ter-me recusado a fazer fichas de matemática e números em francês até cem.

terça-feira, 13 de julho de 2010

ortografias

O meu filho crescido que já vai para o segundo ano indecisou-me sobre dois ésses ou cê com cedilha para um qualquer vocábulo com que queria legendar um desenho e eu hesitei incertezas antes de lhe responder. Quando lia mais livros do que blogues estas dúvidas nunca me atrasavam os discursos.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

famílias






Todas tão (des)iguais.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

menino + menina

terça-feira, 6 de julho de 2010

muitas lá de fora

Eu ia escrever Um masculino e uma feminina decidem acasalar os dias e as tralhas mas de repente pensei que agora, felizmente, também posso escrever um masculino e um masculino ou uma feminina e uma feminina por isso vou recomeçar e reformular os géneros. Duas pessoas decidem acasalar (ou amigar, como dizia a minha avó Rita, Fulana vive amigada com Sicrano, a reprovar a falta de igreja e aliança, e eu achava tão bonito, Apaixonados e amigos, há lá coisa melhor, avó?) os dias e as tralhas e famílias, amigos, vizinhos, conhecidos e desconhecidos começam logo a ladainhar os Então, quando é que encomendam um bebé?, os Então, e o bebé? e os Então, quando é que mandam vir um bebé?, tudo acompanhado de várias jocosidades sobre treinos e aulas práticas e como fazeres. Mais ano, menos ano as pessoas lá se decidem a triplicar-se. E ainda mal desforrados do parto e estonteados com cocós líquidos, mamadas, noites sem dormir e capacidades vocais inesperadas em menos de quatro quilos de gente, recomeçam a ouvir famílias, amigos, vizinhos, conhecidos e desconhecidos nos Então, agora têm que mandar vir mais um para brincar com este., e nos Então, agora tem que vir a menina., no caso de terem um masculino ou nos Então, e o menino?, no caso de terem uma feminina. Algumas pessoas decidem-se pela unicidade e acredito que este palavreado se vá continuando até as rugas e os cabelos brancos o ridicularizarem. Outros, já mais aquietados com os nãos, as birras e os chichis nos tapetes, lá se resolvem a desdobrar a prole. Quando o nascituro é do sexo oposto ao primogénito, famílias, amigos, vizinhos, conhecidos e desconhecidos emudecem com um aliviado Pronto, já têm o casalinho, agora já estão despachados. Quando repetem o género, alguns - só alguns, poucochinhos, que a maioria afirma segura que a vida não está para ter muitos filhos - ainda vacilam uns desconvictos Então, ainda vão à procura da menina? ou À terceira é que é o rapaz!. Agora ter quatro... ah, ter quatro não tem justificações nem incentivos nem desculpas. Ter quatro está errado.

Tenho coleccionado, proporcionalmente ao aumento do diâmetro da barriga, perguntas e imbecilidades. Ao princípio respondia educadamente às perguntas, que eu carrego comigo este mau-hábito de me justificar (Que não, que não foi tratamento. Que sim, que tenho uma prima que teve gémeas, mas mães, avós, bisavós e outra parentela quase desconhecida lá para trás não pariram nem cuidaram em dobro. Que sim, queríamos ter o três, mas quando começámos a dialogar Achas que agora era uma boa altura, com este ainda tão pequenino? já cá estavam semeados estes dois. Que sim, calculo que seja uma trabalheira. Que não, não sei como vou fazer.), e atormentava-me com as imbecilidades. Agora já me consigo rir. Assim, vizinho com os Força! e Coragem! e Vai ser uma festa! e Boa sorte! Não se preocupe, eles dão muito trabalho no princípio mas crescem num instante e depois brincam todos uns com os outros!, queria deixar aqui para a maioridade dos miúdos o top (que não sei se é ten ou se já ultrapassou em muito a dezena) dos desagrados que lhes estão a acolher estas semanas de vida na barriga. Perdi a conta aos recorrentes Coitada!, Coitadinha!, e Que horror! Quatro filhos!. Deixei de elucidar os Mas como é que fez isso? e os Então? Engravida com o ar?. Ignorei os Mas isso já não se usa, ter tantos filhos! Isso era antigamente, as mulheres modernas agora só têm um! e calei as discordâncias com os Mas para quê pôr mais pessoas no mundo se o planeta já está tão cheio e se isto está tudo tão mal?. Habituei-me aos Isso não se pega, pois não? e aos aterrorizados O quê? Ainda há mais um? E mais outro mais crescido? das poucas vezes que não tinha comigo algum ou os dois de cá de fora. Ri-me a sério de uma colega com que não me cruzava desde a barriga do Joaquim e que estranhou Mas então ainda não nasceu?. Acalmei as dúvidas dos Tens a certeza que não tens aí dentro mais nenhum escondido? e ensurdeci aos Mas para que é que queres mais bebés se ainda aí tens um tão pequenino para acabar de criar?. Concordei com os Isto agora anda aí uma onda de gémeos!. E finalmente espantei-me com a cigana do mercado que me pesava dois quilos de cerejas e um de morangos O quê, filha? Vais ter dois? E esse, é menino, não é? E aquele maiorzinho também é rapaz, não é? Coitada, três rapazes! E marido, também tens algum em casa? Coitadinha, ter que aturar quatro homens em casa!

segunda-feira, 5 de julho de 2010

terceiras cá de dentro

Prepara-te Joaquim. Pensas que vais continuar a ser o bebé, toda a gente à tua volta Ai que simpático, Ai que bonito? Não, vais ser o do meio! Os outros é que vão ser os bebés! Ainda por cima dois! Já ninguém te vai ligar nenhuma! Vais ser só o do meio!

segundas cá de dentro

Então... eu... mais o Joaquim... mais esses dois... vamos ser quatro, não é? Quatro. Ena! Lá na escola mais ninguém tem tantos irmãos! Vou ganhar a todos! Vou ser o miúdo que tem mais irmãos! Ainda por cima vou ser o mais velho, assim eu é que vou mandar neles todos! Quatro. Uau!

primeiras cá de dentro

Oh não, oh não, oh não. Ralhei-me logo, que devia ter composto melhor as informações, que já se sabe que a maneira de explicar, com os miúdos, condiciona as reacções. Mas estava ainda tão atrapalhada que assim que os vi no lado de fora da porta, o pequeno a iogurtar o lanche e o grande a investigar os verdes do rebordo do cimento, Já viste esta folha, mãe, tão linda, com manchas brancas... exibi-lhes o rectângulo minúsculo e anunciei sem preliminares São dois, vamos ter gémeos. Oh não, oh não, oh não. Com muitas lágrimas. Retrocedi nos medos, adocei-me, simulei-me sossegada e satisfeita, procurei optimismos, Oh filho, não chores, são dois, não faz mal, é bom, vais ter mais manos... Oh não, oh não, oh não. Tantas lágrimas. Então, filho? É que vão ser iguais e depois eu não os conheço, vou chamar o nome de um ao outro. Oh não... Sorri-me pela primeira vez na tarde e atalhei-lhe os melodramatismos com as falsidades, a duplicação de cordões e placentas e as grandes probabilidades das diferenças. Ah, então vou conseguir conhecê-los, não é? Não me vou enganar nos nomes, não é? Ah, então pronto! Que bom, dois irmãos de uma vez só!

quinta-feira, 1 de julho de 2010

imprevistos

Desperdiço minutos todos os dias a organizar as horas em listas de planos e trabalhos. As tarefas de amanhã, os jantares da semana, as compras do supermercado, onde ir com os miúdos no domingo à tarde, as férias do Verão. Desprezo sempre os inesperados e não lhes guardo espaço nas longas filas de a fazeres. Sabes o que dizem, que a vida é o que acontece quando não fazemos planos, riu-se a Mê quando lhe contei o acontecido no meio do corredor dos frios, salames, afiambrados, mortadelas, paios, salpicões e linguiças à direita, tomates, chuchus, cenouras, batatas doces e pimentos vermelhos à esquerda. A Mê persiste em atravessar-se-me à frente nos corredores do minipreço, eu sempre a equilibrar os dois miúdos (um em pedinchices e ajudas Podemos levar Tulicreme, mãe?, Olha, leva destes queijinhos que o pai gosta muito., Não te esqueças dos guardanapos que já acabaram. , o outro a desdobrar as mãozinhas gordas para tudo o que se lhe avizinha e a tentar morder alhos, limões, massa fusilli e enlatados, que o miúdo não é de esquisitices e eu estou sempre à espera do dia em que os alarmes vão começar a reclamar por causa dos comestíveis que ele esconde no carrinho atrás das costas e que o irmão pesquisa meticulosamente antes da fila das caixas Mãe, ele está a roubar uma cebola!, Mãe, ele leva aqui um iogurte líquido!) com um carrinho atafulhado de massas, arroz, carne, peixe, iogurtes, ovos, verdes e frutas, ela sempre a desequilibrar latas de almôndegas para gato mais ração seca para cão e a responder-me com provérbios e frases ditas por toda a gente. Cá se fazem cá se pagam. A galinha da vizinha é sempre mais gorda do que a minha. O homem sonha. Ah, os imprevistos. Assim, de repente, reduzem os planos todos a nadas e obrigam-me a contorcionar adaptações a uma vida com que eu nunca imaginava cruzar-me pelo caminho.

É uma cena quase comum, em filmes e livros, e uma amiga que antes era e agora já não é, e que um dia colidiu um carro com uma árvore solitária no meio das planícies alentejanas também me confirmou que sim, que viu a vida a correr-lhe à frente do calculado fim. Eu cá não sei se será assim. Mas, no caso de antes de morrer os percursos desta biografia se me retrospectivarem em jeito de ecrã de cinema, tenho a certeza que esta há-de aparecer na amálgama das importantes. Agora, muitas semanas, centímetros, quilos e calmas depois, tenho pena do relato só incluir pânicos e medos. Eu gostava de chegar aqui e despejar caracteres de alegria, de satisfação e de felicidade instantânea. Mas não. Houve apenas susto. E muitos Eu não consigo, Eu não sou capaz, Eu não sei como é que isto vai ser, Mas porquê eu?

Despi-me e deitei-me sem os pudores de há uns anos atrás, quando as marquesas com os ganchos para empoleirar as pernas me pareciam torturas medievas e quando ainda não me achava capaz de empurrar para o mundo duas crianças de parto normal sem epidural. Expliquei sumariamente os dois riscos no teste, os já trinta e nove anos, a gravidez recente, um bebé de onze meses ainda a mamar e o muito sangue quase dia-sim-dia-sim. E depois esperei enquanto a médica me reduzia a ficheiro de computador o nome, a idade e as queixas, mãos apertadas e olhos muito abertos, truque aprendido há tantos anos com a Mariana da Alice e que continua a ajudar-me a enxotar estas lágrimas fáceis que insistem em escorrer nas maiores inoportunidades. Não vou chorar, não vou chorar, não vou chorar aqui em frente a uma médica desconhecida das urgências. E preparei-me para não ouvir o coração e não ver mãos e pés a mexerem, Não faz mal, já tenho dois, vendo bem as coisas não preciso de um terceiro para nada... Não, não estou a ver nada... parece-me tudo bem... o saco está intacto... olhe, até se está a mexer... talvez a placenta esteja um bocadinho baixa... vou ver melhor... E foi ali. A imagem que não vou esquecer. Eu a olhar para os dedinhos e perninhas e cabeça, que à terceira as manchas estranhas da primeira já têm todas nome sem precisar de perguntar E isto o que é? e de repente o um desdobrou-se em dois, um instantinho só, e depois unificou-se outra vez. Oh! São dois, não são? São dois! Eu vi dois! A médica calada, o sensor na minha barriga a retroceder à procura do dobro, o espelho a aparecer outra vez no monitor. Sim, parece que são dois. Parabéns, vai ter gémeos! Que giro, gémeos! Parabéns? Giro? Não, não, não, isso não é meu. Isso deve estar avariado. Não podem ser dois. Não tenho lugares no carro amarelo nem roupa que chegue, nem carrinho duplo, nem espaço em casa, nem alcofas e camas, nem dinheiro, nem planos, nem vontades, nunca pensei ter quatro filhos... Quatro? Quatro é uma multidão, eu só quero três, que três já são imensos... E o meu marido e os miúdos lá fora à espera que eu saia e diga Perdi-o, afinal já não vamos ter mais nenhum bebé e agora como é, chego lá e digo Olha são dois! Não, não podem ser dois, um chega perfeitamente., e a médica e a enfermeira a sorrirem da minha abundância de palavras e dos meus pânicos, os miúdos a mexerem-se no monitor, eu a fazer contas a colos e braços e mimos e dinheiros, Mas estão aqui, vê? São seus. E são mesmo dois. Que sorte, vai ter gémeos.

Não vale a pena. Fazer contas e listas e tarefas, planear, organizar, decidir, controlar, percursar. Há os imprevistos. E se calhar a Mê é que tem razão...