quinta-feira, 23 de novembro de 2006

a Boba


A Doris é uma lindeza. Desde cachorrinha que as pessoas na rua páram e reparam nela e lhe querem fazer festinhas e miminhos e perguntam o nome e a raça e se é mansinha e assim e tal e tal e tal... Ora a Doris é tão pródiga em lindezas quanto parca em ideias. Pronto, não é esperta. Aquela esperteza dos cães de que tanta gente fala (ir buscar coisas, salvar crianças, guiar cegos, encontrar objectos...) ela não a tem. Quando lhe dizemos deita, ela senta-se. Quando lhe dizemos dá a pata, ela olha para nós. Quando lhe dizemos vai para o quintal, ela vai para a sala. Quando chamamos a gata, ela aparece. Quando chamamos o Simão, ela aparece. Quando quer ir à rua, senta-se e olha para nós. Não ao pé da porta nem ao pé da trela. Ao pé de nós, onde estivermos. Quando tem fome, senta-se e olha para nós. Não ao pé do prato da comida nem ao pé do saco da comida nem sequer na cozinha se lá não estivermos. Ao pé de nós, onde estivermos. E também é pródiga em bobalhices. Corre para o meio da estrada quando vêm carros a passar. Come tudo o que encontra na rua, sorrateiramente, para depois chegar a casa e vomitar, não no quintal nem no chão da cozinha, mas nos tapetes da sala. Pensa que aqueles cães minúsculos e encaracolados que lhe rosnam e tentam morder estão a brincar com ela e dá saltos e pinotes e cabriolices que quase os atropelam e esmagam (sim, que ela é enorme. E pesada!). Foge a ganir, de rabo entre as pernas e aterrorizada, de cães do mesmo tamanho ou maiores que lhe abanam o rabo e só a querem cheirar. Tenta brincar com os gatos da rua que lhe fazem ffuuus furiosos de pêlo em riste. Se ficar num quarto ou na sala e a porta por acaso se fechar não ladra para nos chamar nem gane nem empurra a porta com a pata; deita-se a dormir e espera que alguém se lembre de a procurar - mesmo que isso leve horas ou dias a acontecer. Deita-se no meio da porta da cozinha ou no meio da porta da sala ou no meio de outra porta qualquer, de preferência de uma divisão onde se vá muito, obrigando-nos a passar por cima dela de cada vez que entramos e saímos. Não vem quando a chamamos. Chegámos a pensar que ouvia mal. Não ouve mal. Se dissermos baixinho pão ou arroz ela aparece logo. Chegámos a pensar que via mal ao longe. É provável. Isso ou ser distraída ou fingir que não nos vê, tal como finge que não nos ouve. Por fim deixou de beber água e apanhou uma infecção urinária, obrigando-nos a idas e idas à veterinária, comprimidos escondidos dentro do pão, copinhos para apanhar o xixi, ecografias de barriga para o ar em cima da marquesa, suspeitas de pedras nos rins e dieta controlada (isto quer dizer uma ração caríssima!). Agora, que está com o cio, senta-se antes de de ir e vir da rua, tornando a tarefa de tirar e pôr as cuequinhas uma questão mais de força do que de jeito. Por tudo isto deixou de ser Doris e passou a ser Boba. A cadela Boba. Que só faz bobalhices.
O Simão, desde que começou a gatinhar, entornou-lhe vezes sem conta o prato da comida. Mexeu-lhe na comida enquanto ela comia. Chegou a comer uns biscoitos cor-de-laranja com um ar nada apetitoso. Entornou-lhe vezes sem conta a tijela da água. Puxou-lhe o rabo. Puxou-lhe o pêlo. Puxou-lhe as orelhas. Tentou enfiar-lhe dedos, lápis, chaves dentro dos olhos e da boca. Brincou com a trela dela, com os brinquedos dela, com os ossos de roer dela. Transformou-a em cavalo e galopou. Transformou-a em mosquito e bateu-lhe com o mata-moscas. Transformou-a em banco e sentou-se em cima dela. Transformou-a em formiga e deu-lhe sapatadas. Transformou-a em leão e perseguiu-a à volta da mesa da sala. Transformou-se em cão como ela e exigiu andar de trela a gatinhar, a cheirar portas, a comer e a ladrar. Deu-lhe pontapés e cabeçadas e gritou-lhe vezes sem conta. Ela às vezes ladra a ameaçá-lo - ou a chamar-nos - mas NUNCA lhe mordeu. Abana o rabo assim que o ouve acordar. E aprendeu a ronronar com a gata e a ressonar com o dono. Porque nos ama.
E nós compensámos a desilusão da esperteza com esta prenda tão especial e já não concebemos os dias sem estes pequenos incómodos bobos.

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