quarta-feira, 22 de agosto de 2007

dizem que

"Quem são os nossos pais, o que há por detrás dos rostos que nos geraram? De entre os biliões de pessoas, apenas duas, de entre centenas de milhares de espermatozóides, apenas um. Antes de sermos filhos da nossa mãe e do nosso pai, somos o resultado de biliões de combinações e de escolhas - feitas e não feitas - que ninguém é capaz de esclarecer. Porquê aquele espermatozóide e não o outro, um pouco mais à direita? Porque é que só aquele contém as características que dão vida à pessoa de quem se sente necessidade? Esse nascituro pode ser um Leonardo, um canalizador, ou mesmo um cruel assassino. Mas necessidade de quem? Necessidade para quê? Para que servem todas essas vidas?
E se, na verdade, já está tudo predisposto, como no menu de um restaurante, se um Leonardo só pode vir a ser um Leonardo, e o mesmo se passa com o assassino e o canalizador, que sentido tem toda a nossa existência? Será mesmo verdade que somos feitos com as peças de uma caixa de montagem: em cada caixa, um número que determina o projecto?
Será que, lá em cima, no céu, há alguém que decide, como uma dona de casa afadigada: "Hoje, quatrocentos canalizadores, uns oitenta assassinos, e quarenta e dois cientistas?"
Ou então, o céu está vazio, como muitos dizem, e as coisas avançam devido a uma espécie de movimento perpétuo: a matéria começou a agregar-se em tempos remotos e já não pode parar, vai gerando formas cada vez mais complexas. E foi justamente essa complexidade que gerou a grande ficção, aquela que nos quer fazer acreditar em alguém que está acima de nós.
Porquê aquele espermatozóide e porquê aquele homem? Porquê aquela rapariga e não a da carteira ao lado? Porque será que, graças a um evento que não dura mais do que alguns minutos, duas pessoas que, poucas horas antes, talvez não se conhecessem, passam a ser os nossos pais? Estaremos destinados a ser metade de um e metade do outro, mesmo que nunca os tenhamos conhecido, mesmo que o acaso nos envie para adopção para o outro extremo do mundo?
Seja como for, somos eles.
Eles e os seus pais e os pais dos seus pais e recuando ainda mais no tempo, até os ramos da árvore genealógica ficarem cobertos - a paixão pelos insectos do avô, o gosto pelo canto da bisavó, o interesse pelos negócios do trisavô, o alcoolismo do outro avô, a vontade de mandar tudo para as urtigas dos vários primos, o instinto suicida de dois tios, a mania do espiritismo de uma tia-avó - está tudo metido dentro de nós como numa bomba de relógio: não somos nós que regulamos o timer, já está regulado de início, sem nós sabermos. A única sabedoria é saber que é assim, ter consciência de que, de um momento para o outro, algo que não controlamos pode deflagrar dentro de nós.
Assim, um homem e uma mulher - no meio de biliões de pessoas iguais a eles - encontram-se a certa altura da sua vida e, após um tempo que pode variar entre alguns minutos e uma dezena de anos, repetem-se numa outra forma de vida."

Escuta a minha voz, Susanna Tamaro, Editorial Presença

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