segunda-feira, 20 de agosto de 2007

semente

Nem sequer se pode dizer que tenha sido uma concordância planeada nos meses de barriga ou nos primeiros choros no mundo cá de fora. Foi muito anterior a isso, uma revolta a crescer ao mesmo ritmo da progressiva compreensão do mundo, um dedo apontado acho que ainda antes da rebeldia dos anos adolescentes, Se um dia tiver filhos nunca ficam com vocês que não os quero a passar pelo que eu passo. Promessa feita, promessa cumprida. Não imaginava era outro lado igualmente labiríntico.

Por isso o miúdo sabe toda a verdade. Ou pelo menos sabe as meias-verdades que as ainda diminutas consciências dos quatro anos lhe permitem conhecer. Sabe da avó Cecília e do avô Francisco, pais do pai Mário. Que a avó Cecília morreu de amor, que o cancro não foi causa mas foi efeito, no dia de anos do marido para o castigar. Que o avô Francisco existiu a não viver desde aí e acabou por morrer, numa morte muito feia e inesperada, ainda antes de ele me começar a dar (valentes) pontapés na barriga. E sabe vagamente da bisavó Hermínia, empenhada em destruir os afectos familiares; da tia-avó Noémia, em abortos sucessivos obrigados pelo marido e que morreu com o desgosto de não ter filhos e a mesma doença da irmã dois anos certinhos antes dela; do tio-avô-falso Francisco, auto-intitulado um homem dos cemitérios, duas vezes por semana a pôr flores e a falar com a campa da mulher que ajudou a morrer, acompanhado da mulher actual, uma Isabel semi-esquizofrenada por "lambisomens" e visitações; do tio, diferente do pai em tudo menos no nome, tão estranho e psicótico que chegámos a diagnosticar cá para connosco Asperger e outras perturbações similares. São (imensos) mortos dramáticos que foram vivos genuínamente bizarros, que isto assim escrito soa a fantasiado mas até está resumido.

E depois sabe da avó Augusta e do avô Augusto, pais da mãe, pais infelizmente meus, que deve ter visto não mais do que cinco ou seis vezes só aos dois anos e tais e que lhe suscitavam choros lancinantes e despropositados, como se em intuições das minhas mágoas, que eu cá tenho a certeza que os filhos não nos herdam só o ondulado do cabelo e o feitio dos pés. Chama-lhes avós bruxos e pergunta, feito João e Maria, Ela não me vai comer?, e eu afianço-lhe que não, claro, que eu não deixo, e ai de infantário ou educadora que venha cá querer perceber estes desenredos familiares ou enumerar maravilhas das convivências com avós. Deste lado há menos de uma mão cheia de gente e os mortos estão de fora, provocados pelas maldades de dentro. É isso que há a mais, o mal. O mal mesmo mau, profundo, que ainda me deixa aterrorizada nestes anos de adulta, e que não nos deixa outra opção senão a distância geográfica e emocional, tal como fugimos e esquecemos os anos num campo de concentração para podermos construir uma vida com as matérias-primas que temos à mão.

Eu podia atalhar-lhe as origens com um resumido Uns já morreram e os outros estão longe e são muito velhinhos, que eu ludibrio-lhe tanta pequeneza (Sim, o papá está quase a chegar, hoje é terça, falta muito pouco para sábado; Não, não dói nada, o sangue seca num instantinho e amanhã já está curado; É da cebola, querido, não estou nada triste...) que também lhe podia corderosar as grandezas. Mas esta é a família dele. Tem direito a sabê-la. Tem direito a perceber os porquês de deixarmos lá as outras raízes, apodrecidas e estéreis, a secar ao longe e os de querermos plantar, com ele, novas raízes.

Semeamos. Crescemos árvore.

1 comentário:

Paula Sofia Luz disse...

Poderoso, Ângela, este texto.
um beijo.