sexta-feira, 5 de outubro de 2007

multiplico-me

É a mãe do Simão? Lembro-me claramente da voz. Agradável. Amena. Confiante. De enfermeira, mas isso só soube depois. Eu a ofegar, lembro-me que cheguei a ofegar, que naquela casa o estendal obrigava-nos a grandes trajectos até ao telefone. Quintal, escadas, cozinha, corredor pequeno, o outro corredor, escritório. As camisolinhas e as calçinhas e os pijaminhas e as meinhas, todos tão menorzinhos, lá abandonados no alguidar à espera das molas e do sol, à minha espera e eu a ofegar. A voz insisitiu É a mãe do Simão? E eu desassossegada com a estridência do telefone, Mas como é que me esqueci de desligar isto, que me acordam o miúdo que levou que tempos a adormecer e eu tenho que aproveitar os sonos para fazer máquinas e estender e adiantar o almoço e devia aspirar mas isso não por causa do barulho e nem me lembro se a cadela foi à rua e se já pus comida à gata e... É a mãe do Simão? Lembro-me da voz a repetir-se, ainda agradável, ainda amena, apesar da minha ausência. A roupa. A casa desorganizada. A despensa a esvaziar-se. A cadela. E banho, devia tomar banho agora já de manhã, mas a casa-de-banho é mesmo ali ao lado do quarto. Neurótica, neurótica, estou a ficar neurótica, lembro-me de ter pensado, isto são as hormonas e o leite e... Estou? Está a ouvir-me? É a mãe do Simão?, ainda suave mas um tudo nada mais alta, a atrapalhar-me os pensamentos apressados, a avolumar-se no meio dos cruzamentos desordenados, as palavras a encaixarem-se umas atrás das outras e a significarem-se pergunta. Mãe. Simão. Eu. O bebé com meia dúzia de dias a dormir na caminha branca lá de dentro. Eu. Mãe. Dele. Respirei fundo. Lembro-me que respirei fundo. Lembro-me que pensei que ainda não me tinham chamado mãe do Simão. Tinham-me chamado mãe na maternidade, mas isso era uma designação vaga, para todas. Grávida. Bebé. Mãe. Eu já não era eu, eu era a mãe dele. E ele é que era. Ele já era. Respirei fundo outra vez. Sou. Sou eu. Sou a mãe do Simão.

Na quarta quando me puseram à frente a folha de presenças e vi o espaço em branco na parte do encarregado de educação voltei a deixar de ouvir por uns segundos as descrições da escolinha e das rotinas e dos almoços e lanches. E voltei a respirar fundo antes de me assinar. Sou eu, a encarregada de educação. Dele. O meu filho-pessoa que só por nascer e por crescer me vai acrescentando identidades.

Não sei se alguma vez vou deixar de respirar fundo...

1 comentário:

Paula Sofia Luz disse...

Que nunca deixes. É bom sinal.
A mim só me chateia a distância, a frieza que às vezes encerra a distinção.