sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

pedestres

São só três paragens. Três paragens certinhas, uma aqui na rua debaixo, a outra em frente ao jardim, a última lá mesmo em frente ao arco. Era só descer a travessa onde há sempre carros desarrumados em cima do passeio estreitinho e esperar por um dos muitos setecentos e tal em frente à farmácia onde me desgasto em aerius e soro e sprays de água do mar para o nariz que nunca fica enxuto e onde trabalha a senhora simpática que já me assistiu a otites e a engessamentos e a constipações e que fala sempre do neto. O meu neto também era assim, foi acalmando com a idade, consola-me ela os desesperos com os saltos da balança para o banco e com as incursões na parte de dentro do balcão, Tu tens aí brinquedos escondidos atrás? E tem sempre sugus nos bolsos, a senhora simpática, e pergunta ao meu miúdo Tu queres sugus, Simão?, e agora oiço quase todos os dias Vamos à farmácia?, quando estou a dar as duas voltas à chave na fechadura. Esperta, a farmacêutica que teve um neto mexido, que eu também devia andar sempre com sugus nos bolsos para remunerar os com licença e os se faz favor e os escassos sossegos, que concerteza acertava mais do que com as reprimendas e com os Está quieto! que dão sempre o resultado contrário.

E até há sempre lugares sentados, nos setecentos e tal, que àquela hora só carregam mulheres encasacadas e homens de boina. Carracundos, a resmungar com o tempo e com as travagens bruscas e com os preços e com os atrasos. Para onde irão às nove da manhã, pergunto-me sempre, tão encasacados e emboinados e azedos. E apressados. Por isso podíamos ir, num dos setecentos e tal, que o miúdo concerteza até se alojava num banco junto à janela, e ele simpatiza com tudo o que roda desde que possa ir a embaciar vidros e a comentar exteriores. Depois param em frente ao jardim, o nosso jardim, onde muitas tardes fazemos a cadela correr atrás de um osso descorado de tanto atirar e de tanto morder, os setecentos e tal, e a seguir mesmo em frente à escolinha amarela. Por isso podíamos ir de autocarro, que encurtávamos as distâncias e os tempos e não chegávamos quando os meninos já estão todos de bata aos quadradinhos sentados a desenhar ou a cortar. Podíamos ir de autocarro, que são só três paragens.

Mas aí não levávamos a Doris, a nossa Dorizinha, a apressar-se à nossa frente e a mastigar desavergonhadamente as migalhas arremessadas aos pombos, que imagino as caras dos homens emboinados e das mulheres encasacadas, carrancudos e azedos e apressados, se eu me tentasse transportar num dos setecentos e tal com um miúdo cantarolante e uma cadela sorridente. E aí não dizíamos bom-dia à nossa árvore. E aí não víamos se os foguetes-de-natal já estão a perder as hastes vermelhas, os tempos que eu levei a clarear porque é que aquelas manchas verdes e deslavadas e espinhosas que abundam pelos canteiros dos jardins se chamam foguetes-de-natal, que aquilo no resto dos meses não recorda nem natal nem foguetes. E aí não espionávamos os botões grandes, rosados, que de dia para dia, se agigantam de umas folhas verdes claras e concerteza florirão cheiros e cores alguma destas manhãs. E aí não cheirávamos a árvore de que não sei o nome (aborrece-me tanto, não saber o nome das árvores) e que agora se encheu de uns casulinhos verdes peludos e de umas flores brancas aromáticas, que paramos sempre lá debaixo, de olhos fechados a inspirar primaveras próximas e a inventar contos de abelhões e de moscardos. Era uma vez um abelhão comilão que vivia naquela flor, vês? Aquela, a mais alta. Um dia o abelhão comilão foi comer uma rosa e picou-se. Ai! disse ele. E nunca mais comeu rosas. E aí o miúdo não chutava relva fora as laranjas que o vento nocturno destronca e deixa perdidas e solitárias pelo chão. E aí não espreitávamos os formigueiros, as moscas, as abelhas. E aí não chegava à escola com o caracol joãozinho no bolso direito da bata e um meteorito mágico no esquerdo. E aí não descia três vezes, muito depressa, pelo escorrega grande difícil de subir, São só três, mamã, num instantinho, para não ser sempre o último a chegar, do parque que àquela hora está sempre desocupado de meninos e de risos.

Podíamos ir de autocarro, que são só três paragens. E aí não íamos e voltávamos a pé. Mas acho que os nossos dias eram um bocadinho mais tristes por causa disso...

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