domingo, 30 de novembro de 2008

não matam mas moem

Eu acamava-me com anginas. E uma ou outra pneumonia. E constipações valentes, cheias de tosses e febres e nariz atrapalhado. Quase tudo diagnosticado e receitado no consultório do Doutor Jorge, um dos dois médicos lá da terrinha. O Doutor Jorge consultava lá em baixo, mesmo por detrás do jardim do coreto que, anos depois, continua canteirado exactamente nos mesmos feitios, com várias salas de espera entupidas de gélidos azulejos azuis quase até ao tecto e com umas cadeiras cinzentas estranhas e apetecíveis porque escorregáveis para trás. Não havia secretária nem marcações nem urgências e às vezes era preciso esperar a tarde, o que não me aborrecia porque havia sempre outros miúdos mais ou menos febris a desesperarem comigo. E era fácil entreter as horas com corridas e escondidas e deslizamentos nas cadeiras, acompanhadas das reprovações maternas Assim as pessoas vão pensar que não estás doente. O consultório era grande, castanho-escuro e povoado de esqueletos e pinturas de pacientes esventrados nas marquesas que me tolhiam as respostas aos Então onde é que dói? E o Doutor Jorge, também grande como o consultório e embatado de branco imaculado, baixava a respeitável e lustrosa careca, depois de examinações a olhos, boca, ouvidos, pulmões e barriga, e receitava-me sempre injeções. Ou supositórios. Para as anginas e penumonias e constipações que agora acho que eram gripes. E eu tinha muito medo do Doutor Jorge por causa das injeções e dos supositórios e dos esqueletos e dos quadros com sangue muito vermelho.

O meu miúdo tem viroses. Já teve uma otite, já berrou de dores nos pós-despojamentos das amígdalas e dos adenóides e já partiu o rádio. De resto tem viroses. Das que dão febre exagerada ou das que dão diarreia ou das que dão vómitos dias seguidos. Tudo viroses. Trato-as a todas com ben-u-ron, chá de flores de anis, xarope de cenoura e açucar amarelo igual ao que a minha avó me arranjava, muitos miminhos e embrulhadinhos na cama grande a noite toda, estórias e documentários de golfinhos e tartarugas-bobo debaixo da mantinha castanha no sofá. E quando a febre teima em não o deixar arrefecer a meio da noite e o pai me acha inconsequente por não querer arrastá-lo para as urgências pediátricas e ele lacrimeja que odeia o brufen eu, que nunca o deixo ir para a escola de dentes deslavados nem omitir a sopa ao jantar, sei, entranhadamente, que o miúdo vai melhorar e que não precisa de se urgenciar. Reforço os beijinhos e os embrulhadinhos, colhero-o com mais ben-u-ron, destapo-o enchaveno-o com mais chá. De manhã quase adormeço em frente à tijela azul dos cereais mas ele está fresco, cantarolante e nos ambicionados trinta e seis.

Curo-lhe as viroses com receitas caseiras. Até agora tem funcionado.

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