quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

maçãs, hortelãs, papoilas e bolas de berlim

Eu ia escrever sobre a primeira vez. Podia ter-me perdido dela algures no labirinto das memórias tal como se têm ido dissipando outros apêndices e outras desimportâncias. Mas guardo-a focada e com cores nítidas. O miúdo crescido devia somar ali um número vago de meses entre os doze e os vinte e quatro e eu balançava-me entre o desconsolo pelo que não conseguia fazer e o desespero pelo que ele (me) fazia na tentativa de não perder nem o centro nem os (poucos) equilíbrios. Que o meu filho mais velho foi o maior treino de maternidade que alguém pode adquirir numa experiência de único. Uma tarde qualquer desabafei as mágoas e as frustrações na casa recente de uma amiga sem filhos, estupefacta com as arrumações que a ausência de crianças permite e zangada com as asneiras e os barulhos sempre a estorvarem-nos os diálogos. Invejei-lhe especialmente a biblioteca, uma assoalhada toda emprateleirada até ao tecto de livros, um sofá confortável ao pé da janela a sugerir leituras em sossego e silêncio. Leva um livro, disse-me ela. Recusei-me. O miúdo sempre desinquietado, a falta de tempo, os sonos retardados, Mas custa-me tanto não ler... Estendeu-me Os Pássaros de Seda, Leva este, vais ver que vais gostar. A Rosa Lobato de Faria? Ah, não, não me parece. Nunca fui fã dos festivais da canção e embirrava com aquele tom de tia que os papéis da televisão tanto insistiam em ribaltar, Nem sabia que ela escrevia livros, não devo gostar, não simpatizo com ela. Leva. Levei. Abri-o assim a contragosto, depois de deitar o pequeno, naqueles minutos que precedem o adormecer. E não consegui parar de o ler. E fartei-me de chorar. E depois reli-o e voltei a lê-lo. E voltei a chorar. E quando um livro nos faz isto é porque é bom. Muito bom.

E ia escrever sobre como ali, numa das prateleiras da sala, estão quase todos. Têm ido chegando, nos natais e nos anos e quando calha. Falham-nos só os dois últimos mais A Trança de Inês que emprestámos à tia louca do Mário que acredita em espíritos e fantasmas e que o deve ter deixado em parte incerta nalguma viagem a outra dimensão em que se encontra com desaparecidos e falecidos. Detesto emprestar livros. Nunca voltam.

E ia ainda escrever sobre como quando liguei a net anteontem e a vi sorridente, de camisa azul e cabeça baixa, pensei Boa! Deve ter saído mais um livro!, antes de ler o morreu. Morreu? Não, não pode ter morrido. E agora? A morte é para sempre. É essa a grande maldade - a morte é mesmo para sempre.

E ia ainda dizer que enquanto o pequeno Joaquim crescia dentro de mim pensei muitas vezes Se for menina é Rosa. Por causa desta Rosa. E do Rosa, minha irmã Rosa, da Alice. Que escolher para os filhos nomes de pessoas de quem se gosta ainda é melhor do que escolher só nomes de que se gosta.

Mas depois googlei-a mais uma vez, à procura de ânimos para começar a escrever e cruzei-me com isto. E está cá tudo. Eu não preciso de acrescentar nada nem explicar nada porque está aqui tudo. É por causa disto que eu gosto ( e não, não quero dizer gostava, que a morte tira-nos as pessoas mas não os afectos) tanto dela.

Sem comentários: