domingo, 4 de novembro de 2007

as pequenas memórias

Chamava-se Graciette, era assim mesmo, com os dois tês, que estavam coladas as letras nos vidros foscos do portão, Salão da Graciette, no meio de imagens de raparigas loiras e ruivas recortadas de revistas. Dona Graciette, Dona Bernardette, Dona Susette, havia tantas, lá na terrinha onde eu fui menina. Confusava-me, aquilo, nomes tão mal-parecidos, tão afrancesados, tão pouco acomodados a recém-nascidas. Olhava para as donas dos nomes e achava que tinham nascido já assim, com óculos, brincos de ouro, rugas, cabelos esbranquiçados encastelados à força de rolos e calores, chatas e velhas. Desimaginava-as meninas. Que aos quatro e cinco e seis quem tem quarenta e cinquenta é velho e nunca foi criança. A Dona Graciette cabeleireira tinha desalojado o carro de um marido invísivel da garagem e tinha lá espartilhado dois lavatórios, quatro cadeiras e mesinhas com espelhos e dois secadores grandes onde se encaixavam as cabeças cheias de rolos descorados pelo muito vento acalorado. E tinha quatro filhos. A Sãozinha, branca e insonsa, uns dois anos mais velha do que eu, com quem eu antipatizava profundamente. Um miúdo, acho que da minha idade, tão invísivel como o pai. Uma bebé. E depois uma miúda pequena e uma bebé. Havia sempre uma bebé, que mantinha as clientes distraídas a dar-lhe biberões de leite açucarado e a mudar-lhe fraldas e a evitar-lhe os dedos nas tomadas e nas tesouras e a fazer-lhe cucús durante as intermináveis horas de espera em que a Dona Graciette cabeleireira fazia o almoço e adiantava a sopa para o jantar e nutria a prole e lavava a loiça e varria a cozinha e estendia a roupa. A mim ordenavam-me que brincasse. Com a irritante Sãozinha, num quintalzinho nas traseiras, sombrio e soterrado por espadas-de-são-jorge, ou com a miúda que alegremente rasgava Marias ou com a bebé que tentava desesperadamente chupar o secador. E eu abominava as brincadeiras com aquelas miúdas desconhecidas, filhas da Dona Graciette cabeleireira, que às tantas encavalitava uma tábua de madeira nos dois braços da cadeira, me empoleirava lá em cima e, em quatro ou cinco tesouradas rápidas, me despojava dos tamanhos que já tocavam nos ombros e me reduzia a uma cabeça de menino. Para ficar forte, concordavam a Dona Graciette cabeleireira e a minha mãe, deve cortar-se curtinho. E todas as Primaveras, escrupulosamente, a minha mãe me levava menina ao salão de vidros foscos e me trazia quase-menino.
Lembro-me de uma vez desatar a chorar. Muda, quieta, que eu não birrava como o meu filho, melodramático, que escancara lágrimas, gritos e esperneamentos de uma vez só, sem conseguir conter os soluços enquanto os meus cabelos gradualmente atapetavam o linóleo azulado feio do chão. Lembro-me de me ver no espelho, mais de metade do cabelo amputado, a chorar, enquanto a Dona Graciette cabeleireira dizia Ai que vergonha, uma menina tão grande a chorar, e enquanto a minha mãe e as outras Graciettes e Bernardettes e Susettes velhas e chatas diziam Ai que vergonha, uma menina tão grande a chorar, e enquanto a Sãozinha de cabelo comprido e a miúda de cabelo comprido e a bebé de caracóis quase compridos me olhavam embezerradas. Odiei-as. A todas.

Na pré-adolescência vinguei-me e deixei o cabelo balançar-se até à cintura. Livrei-me para sempre do espectro da Dona Graciette cabeleireira com dois tês.

1 comentário:

Paula Sofia Luz disse...

Que nada faz melhor à alma que nos vingarmos dos fantasmas. Fizeste tu muito bem. bjs