quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

sem uma e sem a outra

É que nem a ausência dos incómodos me aligeira as saudades. Prossigo tarefando os costumes de todos os dias deslembrada dos arredamentos. Aspiro um chão invulgarmente despovoado de pêlos. Antecipo-me aos ruídos desagradáveis do despertador inquietada com os tempos para a levar à rua. Esbanjo água na tijela azul. Esvazio o prato da última batata na tijela amarela. Origamo o saquinho das maçãs e o saquinho das cenouras e o saquinho das quatro bolinhas na bolsa verde velcrada à trela. Desassossego-me com a carência de cocós nas pedras. Carrego-me com seis quilos de ração e com cinco quilos de absorvente no meio de cereais, guardanapos e esparguete. Estranho-me a meio da noite quando não forço um peso ao esquerdar as pernas. Esqueço-me que não estão.

Eu ainda perguntei talvez a uma meia dúzia de acompanhantes de cães por veterinários aqui na cidade grande mas os euros e sobretudo os desinteresses e descuidos das respostas fizeram-me preferir as de sempre, a trezentos e muitos quilómetros e numa língua diferente, mas que as conhecem melhor por dentro do que eu. E que lhes lembram os nomes. E que lhes chamam bonita. Bonita, ciciava-lhe a Luísa enquanto lhe tentava esgotar podridões na barriga infectada. Nunca mais me esqueci, do doce na voz dela. Nem da barriga.

Justifiquei-lhe as descomparências. Expliquei-lhe operações passadas e caroços presentes. Este primeiro da cadela, sustado uma tarde destas ao escová-la nas relvas. E os muitos da gata, os da barriga repetentes, os pequenos e velozes do resto do corpo caloiros. Distraíu-se das tristezas com o ir levá-las ao carro a desoras e já empijamado mas quando abrimos a porta para uma casa vazia, desabitada, inóspita chorou-as aflito. Mas porquê? Eu gosto tanto delas. Eu não quero que elas estejam doentes. Eu não quero que elas morram. É melhor tu dares-me um colo... Calei-lhe as lágimas gordas com promessas de saúde e vida longa, zangada com o descontrolar os tempos de vida de quem amo. Vai correr tudo bem, repeti-lhe muitas vezes. A sossegá-lo. A sossegar-me.

Lavo-lhes e arejo-lhes as camas. Vazo pedras novas no tabuleiro. Compro as latinhas preferidas. Arrumo o osso, a corda, a lã cor-de-rosa, a bolinha no cesto dos brinquedos. Espero-as. Na esperança de prosseguir tarefando os costumes de todos os dias durante muitos anos.

Vai correr tudo bem.

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