segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

mãe d'água

Não sei porque é que não tive umas. Quase todos os miúdos as tinham. Não me lembro das justificações maternas. Lembro-me, isso sim, de invejar os miúdos que navegavam poças emborrachados de vermelho ou de verde enquanto eu as marginava, resguardada de pingos e de alegrias. De lhes invejar os risos, os pés molhados e as liberdades.
Uma vez afundei-me. Às escondidas. Os sapatos azuis escuros com atacadores, as meias de lã cremes, eram quase sempre cremes, os meus pés na água castanha polvilhada de folhas e pauzinhos. Para a frente e para trás, para a frente e para trás, pés-baleias, pés-sereias, pés-caravelas a inventarem ondas num mar manso. Caí, interrompi-lhe depois a algaraviada colérica de amigdalites e febres e constipações. Caí, foi sem querer, menti-lhe. Acho que foi a primeira vez que lhe menti. Devia ter uns sete ou oito anos e percebi que podia mentir-lhe. Esqueci as palmadas mas não esqueci os sapatos-barcos e os pés-peixes. E habituei-me a mentir-lhe.

O meu miúdo voa a pés juntos para todas as poças com que nos cruzamos daqui até à escolinha amarela. Chega lá com salpicos nas calças, na capa azul e até na cara. Vira a sombrinha ao contrário para a encher de gotas-preciosas. Eu desalegro-me com as águas de fevereiro mas silencio as preocupações com as mazelas e alegro-me com os contentamentos dele. Umas botas d'água chegam para o fazer feliz e (espero) para não precisar de me mentir insignificâncias.

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