segunda-feira, 17 de novembro de 2008

a primeira

Desrecordo-me cada vez mais de lugares, coisas, pessoas e acontecidos. Historiam-me idas e diálogos que não consigo reconhecer e que afirmo sem dúvidas nunca ter protagonizado. É talvez uma lógica de compensação, diminuir o espaço que as memórias ocupam para a barriga poder ocupar mais. Ou então um prévio deixar lugar suficiente para as preocupações que aí vêm com vacinas e aumentos de peso e fraldas e horas de sono e o-que-fazer-pró-jantar. O passado deixa de ser um caminho escorreito e as recordações descontinuam-se em momentos.

Acho que é isso que me está a acontecer: na minha cabeça não há datas, há imagens, cores e cheiros. Há o azul dos panos em cima da minha barriga um segundo antes do meu filho se me aspectar lá, roxo, sujo e enrugado; há o castanho do meu vestido com a gata em cima dele a tentar desesperadamente respirar; há o cheiro da canela dos bolos que pareciam caracóis e que a minha avó me trazia embrulhados em papel manteiga; há a lã das tranças pretas da boneca carlota que dormia comigo; há os risos do meu filho a ser cocegado ao acordar. Não sei os meses nem os anos mas vejo e cheiro e oiço.

Aqui ainda sei a data, mas isso é porque passou pouco tempo. Era a primeira noite de agosto e estava quente. A janela estava aberta e havia um grilo a cantar lá fora (sim, que eu moro no meio de lisboa mas nas noites de verão oiço grilos e nas manhãs de todo o ano oiço o melro que vive no damasqueiro do quintal do meu vizinho) e eu tinha adormecido no sofá. De repente a frase Estou grávida acordou-me. Expliquei depois ao meu marido a deslógica, não acordei e pensei, a certeza da gravidez, quase audível, é que me acordou. E as preocupações atropelaram-me Ai a casa, não cabe cá mais ninguém, ai o pai que não sei se vai cá estar, ai os ciúmes e o mau feitio do puto, ai o trabalho que quero começar em outubro, ai... e acordei o pai Estou grávida. Não estás nada resmungou no meio de reclamações de sonos e dificuldades em voltar a adormecer. Estou e não sei como é que isto vai ser, preparada para ladainhar as ansiedades com os poucos metros quadrados e as ausências e as birras e as noites, ai as noites em sonos intermitentes e... Mas de repente lembrei-me do meu filho recém-nascido a dormir com aquele cheirinho tão bom e dos pés pequeninos e das mãos pequeninas e do estendal cheio de roupas pequeninas ao sol e fiquei calma. Muito calma. E fui para a cozinha comer bolachas e beber leite. A janela ficou aberta e o grilo continuou a cantar lá fora.

Por enquanto ainda sei, que foi no princípio de agosto, mas tenho a certeza que daqui por uns tempos a minha primeira memória do meu segundo filho vai ser só esta, o calor da noite, o cantar do grilo lá fora na rua e uma certeza sonhada.

3 comentários:

Paula Sofia Luz disse...

Queres dizer com isso que vai nascer em Maio, certo? Que delícia. Os sonos são a parte pior. Mas começamos já aqui a fazer muita força para que rapidamente ele (ou ela, pode ser ela, já viste?)perceba que a noite é para dormir. Eu fui abençoada com os meus, também nisso. O resto é tudo delicioso, sim. E à segunda...muio mais ainda. A casa desdobra-se para os receber. E ´haja colo, que há sempre espaço. beijo

ângela disse...

Não, é para o final de março! Já foi para abril mas agora acertaram-me as semanas e adiantaram o miúdo(ou miúda, mas eu acho que vai ser outro miúdo...)quase duas semanas. E ainda bem, que já cá cantamos parabéns em abril e diversificar é sempre bom.

Paula Sofia Luz disse...

LOL. Pareço eu..que não sabia quando tinha sido e ninguém se entendia. Aliás, ainda duvido que as 36 semanas da M. leonor sejam reais, eh eh. bj
ps: era ão bom se pudessemos falar por msn ou gmail...