segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

ao acaso

Ontem à noite enfriorei-me debaixo de dois edredões mais uma manta e, mesmo assim, os calores não se acercaram. Ainda me levantei para me barricar com mais umas meias e uma camisola mas nem assim consegui aquecer. Encolhi-me muito, os joelhos fetais quase a tremerem no queixo, a fugir dos muitos centímetros frios dos lençóis, mas os sonos demoraram-se, assustados com a chuva e o vento lá de fora. Não fossem as preguiças e os desconfortos de me destapar e tinha ido escaldar-me para debaixo do chuveiro. Adormeci tarde, muito tarde, os pés ainda tiritantes, e sonhei que andava a revestir os tectos do sotão de plásticos e fita-cola para a água e o vento não me diluviarem livros, discos e fotografias.

Tenho andado, aliás, com muitos frios também nos dias. Tremo, entricheiro-me com mais camisolas, não cabido o casaco com que chego da rua, atrapalho-me de luvas e gorros e cachecóis, chateio os miúdos com mais um casaco e muita vitamina C.

O carnaval do crescido resumiu-se aos cabelos às cores e ao nariz que na sexta levou para a escola, feliz na condição de palhaço contente. É um doce, o meu filho mais velho. Mas um doce mesmo doce, daqueles que apetece pôr na boca e deixar a derreter devagarinho, sem mastigar, para não acabar tão depressa. Vai mirabolando máscaras irrealizáveis nos dias anteriores Eu gostava mesmo era de crocodilo., E albatroz? Assim com umas asas enormes que abrissem quando eu abrisse os braços?, Já sei! De peixe porco-espinho, com um balão gigante cá dentro para inchar quando me atacassem!, e depois eu chego com o que mais se me encaixou na carteira e nas pressas e o miúdo bate palmas de felicidade Uau! Era mesmo, mesmo, mesmo isto que eu queria! O fato há-de ficar ali no baú dos disfarces, junto com bigodes, coroas, óculos, chapéus e o leão que quando encaixar nos tamanhos do irmão há-de ter que levar uns coloridos nos pêlos coçados dos joelhos e cotovelos e ainda há-de render muitos divertimentos cá por casa, que faltam-me os ânimos para nos impermeabilizar aos três com galochas, capas e chapéus-de-chuva só para o miúdo ter os três dias de folia do ditado.

Eu até tinha listado saídas e entreténs para estes tempos em casa. Ir à Ilustrarte. Uma tarde inteira de baloiços e escorregas na Serafina ou no Alvito. Apanhar o quinze até à Baixa. Gosto tanto de ir à Baixa. Parar numa daquelas retrosarias da Rua da Conceição e comprar entretela para lhe joelhar os rasgões das calças e lãs para fazer gorros. Apetece-me tanto tricotar, nestas noites frias, gorros e cachecóis, agulhas circulares, chá de maçã e canela e uma manta nos joelhos. Se calhar mando é um mail à Ana, que tem lãs tão lindas e com nomes tão poéticos. Labareda. Violetas. Mar. Hortênsias. Ir à Quinta Pedagógica dos Olivais. Que o miúdo já lá esteve umas duas ou três vezes mas diz que não se lembra. E isto é mesmo assim com os miúdos, têm que se ir repetindo os percursos, que as memórias nestas idades ainda são curtas. Mas os dias chovem, mal-dispostos e escuros, e falham-me as coragens e as vontades para tudo. Até mesmo para (finalmente) organizar o quarto que ainda é só de um mas está mesmo a tornar-se dos dois, agora que o pequeno já não grita desesperos para mamar a meio da noite. Limito-me a inventar bulícios para lhes esgotar as muitas energias e tento assegurar o equilíbrio dos horários para o pequeno não me boicotar as sestas e as noites. E tenho frio. Muito frio.

E hoje e amanhã e depois estou sózinha com os miúdos. Que se calhar quando eles crescerem mais já não digo o sózinha, mas por enquanto é assim, as crianças desacompanham os adultos. A maternidade é muito solitária. Hoje à noite, depois de os deitar, levo eu a cadela à rua, fecho as portadas do pátio, desligo o gás, dou as quatro voltas à chave na fechadura. E depois hei-de ter frio, encolhida e sózinha na cama demasiado grande até para dois lá de cima, por mais mantas e camisolas e meias que me abriguem e tentem confortar.

Apetecia-me uma meia de leite quentinha. Uma meia de leite a sério, de café, e não o deslavado descafeinado com leite que todas as manhãs me ajuda a começar o dia. E ir ver a Precious. À sessão da meia-noite, depois de deitar os miúdos. E um saco térmico de trigo e alfazema da Cristina.

Esta sexta somo mais um ano. Trinta e nove. Apercebo-me que é a última unidade desta dezena e a seguir inicio-me nos enta. Quarenta, cinquenta, sessenta, setenta, oitenta, noventa... Há tão pouca gente a sair deles e a passar a meta (será uma meta?) dos cem. Nunca me ralou muito, a idade, passei a infância e adolescência a querer crescer depressa, estranhava os lamentos dos outros, consolava-os com uns práticos Então, isso é igual, ter trinta e oito ou trinta e nove ou quarenta, mais um ou menos um vai tudo dar ao mesmo. Mas se calhar o que dizem da crise dos quarenta é mesmo verdade, a tal que faz os casais dividirem-se, os homens acompanharem-se de namoradas miúdas, as mulheres metamorfosearem a cor do cabelo e o peso na balança, as viragens nos empregos. Parece que aos trinta quase toda a gente acha que a liberdade da solidão não tem assim tanto valor, acho que aos quarenta começa a olhar-se para trás e questionam-se as viragens nos cruzamentos e nas bifurcações. O caminho que se queria fazer, o caminho que se fez, o caminho que se vai fazer a partir daqui. E agora, para onde se vira? Esquerda, direita ou o mesmo morno do meio? E depois ainda há a morte. Com vinte e trinta acha-se que se tem muito tempo. Eu até acho que com vinte ainda acreditamos que não vamos morrer, tal como com dez não acreditamos que um dia vamos ser crescidos. Com quarenta já temos a certeza que vamos morrer. E sabemos que até pode não tardar outros quarenta...

Esta sexta faço trinta e nove anos. Daqui por um ano faço quarenta. Lá fora chove. Tenho frio e hoje não me apetecem analepses. Vou vestir mais uma camisola e rastejar com os miúdos no chão da sala.

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