quinta-feira, 1 de julho de 2010

imprevistos

Desperdiço minutos todos os dias a organizar as horas em listas de planos e trabalhos. As tarefas de amanhã, os jantares da semana, as compras do supermercado, onde ir com os miúdos no domingo à tarde, as férias do Verão. Desprezo sempre os inesperados e não lhes guardo espaço nas longas filas de a fazeres. Sabes o que dizem, que a vida é o que acontece quando não fazemos planos, riu-se a Mê quando lhe contei o acontecido no meio do corredor dos frios, salames, afiambrados, mortadelas, paios, salpicões e linguiças à direita, tomates, chuchus, cenouras, batatas doces e pimentos vermelhos à esquerda. A Mê persiste em atravessar-se-me à frente nos corredores do minipreço, eu sempre a equilibrar os dois miúdos (um em pedinchices e ajudas Podemos levar Tulicreme, mãe?, Olha, leva destes queijinhos que o pai gosta muito., Não te esqueças dos guardanapos que já acabaram. , o outro a desdobrar as mãozinhas gordas para tudo o que se lhe avizinha e a tentar morder alhos, limões, massa fusilli e enlatados, que o miúdo não é de esquisitices e eu estou sempre à espera do dia em que os alarmes vão começar a reclamar por causa dos comestíveis que ele esconde no carrinho atrás das costas e que o irmão pesquisa meticulosamente antes da fila das caixas Mãe, ele está a roubar uma cebola!, Mãe, ele leva aqui um iogurte líquido!) com um carrinho atafulhado de massas, arroz, carne, peixe, iogurtes, ovos, verdes e frutas, ela sempre a desequilibrar latas de almôndegas para gato mais ração seca para cão e a responder-me com provérbios e frases ditas por toda a gente. Cá se fazem cá se pagam. A galinha da vizinha é sempre mais gorda do que a minha. O homem sonha. Ah, os imprevistos. Assim, de repente, reduzem os planos todos a nadas e obrigam-me a contorcionar adaptações a uma vida com que eu nunca imaginava cruzar-me pelo caminho.

É uma cena quase comum, em filmes e livros, e uma amiga que antes era e agora já não é, e que um dia colidiu um carro com uma árvore solitária no meio das planícies alentejanas também me confirmou que sim, que viu a vida a correr-lhe à frente do calculado fim. Eu cá não sei se será assim. Mas, no caso de antes de morrer os percursos desta biografia se me retrospectivarem em jeito de ecrã de cinema, tenho a certeza que esta há-de aparecer na amálgama das importantes. Agora, muitas semanas, centímetros, quilos e calmas depois, tenho pena do relato só incluir pânicos e medos. Eu gostava de chegar aqui e despejar caracteres de alegria, de satisfação e de felicidade instantânea. Mas não. Houve apenas susto. E muitos Eu não consigo, Eu não sou capaz, Eu não sei como é que isto vai ser, Mas porquê eu?

Despi-me e deitei-me sem os pudores de há uns anos atrás, quando as marquesas com os ganchos para empoleirar as pernas me pareciam torturas medievas e quando ainda não me achava capaz de empurrar para o mundo duas crianças de parto normal sem epidural. Expliquei sumariamente os dois riscos no teste, os já trinta e nove anos, a gravidez recente, um bebé de onze meses ainda a mamar e o muito sangue quase dia-sim-dia-sim. E depois esperei enquanto a médica me reduzia a ficheiro de computador o nome, a idade e as queixas, mãos apertadas e olhos muito abertos, truque aprendido há tantos anos com a Mariana da Alice e que continua a ajudar-me a enxotar estas lágrimas fáceis que insistem em escorrer nas maiores inoportunidades. Não vou chorar, não vou chorar, não vou chorar aqui em frente a uma médica desconhecida das urgências. E preparei-me para não ouvir o coração e não ver mãos e pés a mexerem, Não faz mal, já tenho dois, vendo bem as coisas não preciso de um terceiro para nada... Não, não estou a ver nada... parece-me tudo bem... o saco está intacto... olhe, até se está a mexer... talvez a placenta esteja um bocadinho baixa... vou ver melhor... E foi ali. A imagem que não vou esquecer. Eu a olhar para os dedinhos e perninhas e cabeça, que à terceira as manchas estranhas da primeira já têm todas nome sem precisar de perguntar E isto o que é? e de repente o um desdobrou-se em dois, um instantinho só, e depois unificou-se outra vez. Oh! São dois, não são? São dois! Eu vi dois! A médica calada, o sensor na minha barriga a retroceder à procura do dobro, o espelho a aparecer outra vez no monitor. Sim, parece que são dois. Parabéns, vai ter gémeos! Que giro, gémeos! Parabéns? Giro? Não, não, não, isso não é meu. Isso deve estar avariado. Não podem ser dois. Não tenho lugares no carro amarelo nem roupa que chegue, nem carrinho duplo, nem espaço em casa, nem alcofas e camas, nem dinheiro, nem planos, nem vontades, nunca pensei ter quatro filhos... Quatro? Quatro é uma multidão, eu só quero três, que três já são imensos... E o meu marido e os miúdos lá fora à espera que eu saia e diga Perdi-o, afinal já não vamos ter mais nenhum bebé e agora como é, chego lá e digo Olha são dois! Não, não podem ser dois, um chega perfeitamente., e a médica e a enfermeira a sorrirem da minha abundância de palavras e dos meus pânicos, os miúdos a mexerem-se no monitor, eu a fazer contas a colos e braços e mimos e dinheiros, Mas estão aqui, vê? São seus. E são mesmo dois. Que sorte, vai ter gémeos.

Não vale a pena. Fazer contas e listas e tarefas, planear, organizar, decidir, controlar, percursar. Há os imprevistos. E se calhar a Mê é que tem razão...

2 comentários:

G_ticopei disse...

PARABÉNS!!! É o que apenas quero dizer! E sei que a vida não está para festas, mas... passei por uma situação parecida há pouco e confesso que gostava muito que o desfecho tivesse sido igual. Mas não... foi apenas um falso alarme!!!

Paula Sofia Luz disse...

eu...ainda estou a assimilar. Parabéns, Angela. Depois mando-te um mail.