quarta-feira, 14 de julho de 2010

a minha família de antes

Uns dias antes eu começava a desassossegar-me na janela da cozinha. Não havia telefonemas nem cartas nem telegramas a prenunciar a vinda, que a minha avó iletrava os escritos e resistia a um telefone a inquietar-lhe os silêncios da casa, mas eu começava a esperá-la. A minha mãe, vigiadora atenta e feroz de todos os gestos e de todas as horas, convencia-se que eu atentava nos rapazes de calças de ganga rotas e ténis displicentes que pastoreavam os cadernos no regresso da Secundária Mas que tanto fazes tu aí à janela?, e tratava de me embaraçar com fichas de matemática, números em francês até cem e espanamentos das prateleiras da sala onde nunca ninguém podia entrar para estar limpa e arrumada para as visitas. Enganava-se muito, a minha mãe, que nos rapazes a única coisa que eu reparava era na liberdade de poder vagarar da escola até casa sem pressas e sem espionagens. E eu obedecia, que eu obedecia sempre, quando era pequena, submissa, calada e bem-comportada, e escrevia tudo certinho e com letras bonitas e ajudava a limpar a casa, mas continuava a sorrelfar espreitadelas para a esquina do prédio azul que me impedia as visões até ao fim da rua.

Geralmente ela chegava mesmo antes do almoço. Ou mesmo a seguir. O que deixava logo a minha mãe muito mal-disposta Então vossemecê vem assim sem avisar à hora do almoço e agora o que é que lhe arranjo para comer?. Nunca a ouvi chamar-lhe mãe. Era sempre vossemecê, palavra desusada e até desadequada para quem tinha estudos e obrigações de ensinar letras. Estranhamente eu estava sempre a olhar para a curva no momento em que lá se avolumavam os cabelos brancos e os passos vagarosos da minha avó. A avó chegou, anunciava à minha mãe, a esconder os contentamentos na voz e nos gestos para não a irritar ainda mais, e a demorar-me nas roupas cinzentas, que nunca mais se garriu de vermelhos e azuis e verdes desde que o óbito do marido a confinou a uma viuvez e desamparo precoces, nos dois sacos grandes de riscas abotoados com cordel azul, no chapéu na cabeça e na sombrinha geralmente aberta. Havia sempre uma sombrinha, como ela lhe chamava, nome que ainda hoje continua a fluir-me para os chapéus de chuva, e que dava muito jeito para todas as meteorologias mais para os possíveis ladrões. A minha avó chegava, com aquele cheiro a lavanda que combinei para sempre com as mulheres velhas e sózinhas, queixava-se do tempo e dos atrasos dos comboios, dava-me dois beijos parcos e dizia-me que eu estava grande e, se houvesse calores, demasiado queimada e com comprimentos a mais nos cabelos, actualizava com a minha mãe as novidades sobre conhecidos, vizinhos e parentes remotos, A Teresa vai casar., A avó da Felismina está muito mal, aquilo já não dura muito., Os filhos do João, vê lá tu, enfiaram-no num lar para velhos, coitado., e esventrava os sacos de riscas no quarto lá do fundo. Eu ficava a ver as roupas embrulhadas em lenços e panos e as carteiras e documentos protegidos por sacos de plástico, tudo a cheirar a lavanda, e esperava, sempre a pensar Será que ela se lembrou?, Será que ela se lembrou?, Será que ela se lembrou?. Finalmente do meio de tudo aquilo acabava por aparecer o embrulho de papel manteiga Toma lá uns bolinhos para ti, filha. Chamava-me tantas vezes filha, a minha avó, que morava mesmo encostadinha a uma fábrica de pão e bolos que perfumava os fins de tarde e noites com doçuras e apetites e que me trazia sempre dois bolos embrulhados naquele papel manteiga que agora assepticamente e infelizmente já ninguém usa para os comestíveis. E eu ficava muito contente, com o filha e com as lembranças e com os bolos. Um caracol, massa amarela e enroladinha repleta de canela e açúcar, que eu adorava, e um bolo rocha, creio que era o que ela lhe chamava, atestado de frutas cristalizadas, que eu detestava. Comia primeiro e depressa o das frutas, a desgostar aquela imensidão de quadradinhos verdes e vermelhos e amarelos e brancos e a seguir o de canela, muito devagarinho, na espera de que todo aquele açúcar me adoçasse os dedos, os interiores e os dias difíceis.

Nunca disse à minha avó que não gostava de frutas cristalizadas. Durante tantos anos esperei-a na janela da cozinha, senti-lhe o cheiro a lavanda, disse-lhe Obrigada Vó. ao pacote de papel manteiga e ao filha, mastiguei muito depressa os coloridos desagradáveis e muito devagar os castanhos açucarados e nunca lhe disse que não gostava de frutas cristalizadas. Uma tolice. Agora, tantos anos depois, acho que fiz muito mal. Devia ter dito à minha avó que não gostava de bolo rocha. Tal como devia ter-me recusado a fazer fichas de matemática e números em francês até cem.

Sem comentários: