segunda-feira, 25 de outubro de 2010

todo o tempo do mundo

É Eloisa sem agá, respondeu ela à enfermeira naquelas palavras com muito mais mel e calor do que as nossas. Quarenta e uma semanas, uma bebé dorminhoca e lá muito em cima, uma linha lisinha no sítio das contracções. E você, princesa?, perguntou a enfermeira para a outra cadeira, ataviada de soro e gemidos. Vinte e nove semanas, uma menina desassossegada e apressada, uma linha a ziguezaguear prematuridades e riscos. Ficámos ali as três, com os riscos a encherem o papel e com o tum-tum-tum dos pequenos corações a assegurarem existências e saúdes. Nossa, você vai ter gémeos? Confirmei de cor, já sem pensar nas respostas. Nossa, mas aqueles dois meninos lá fora não são seus? Voltei a confirmar de cor. Nossa, mas o mais novinho é mesmo muito novinho ainda! Quanto tempo ele tem? Voltei a responder de cor. Nesta altura os espantos já deixaram há muito de ter originalidades ou discrepâncias.

Podes vir a qualquer hora
Cá estarei para te ouvir
O que tenho para fazer
Posso fazer a seguir

Eu não gosto de hospitais. Nem mesmo deste, onde as enfermeiras nos chamam princesas, falam com doçuras nas vozes e fazem festinhas nos braços. E há janelas grandes, muita luz e o azul do rio lá em baixo. Tenho esbanjado duas manhãs por semana (e às vezes ainda uns princípios de tardes) a caminhar corredores e escadas para me revezar entre as consultas, os cêtêgês, as ecografias, as marcações e as análises, que isto de ser gemelar e de se estar a prolongar encafua-me num estatuto de risco que desconheci nas outras duas. Pelo caminho cruzo-me com a pedopsiquiatria, a espera da oncologia, a morgue. Abro uma estreiteza na porta da urgência obstétrica e mostro ao miúdo crescido o corredor comprido e as muitas portas. Vês, foi aqui que o mano nasceu e é aqui que os manos vão nascer. Mãe, eu queria ver. Não podes, querido, os médicos não deixam. E não ias gostar. À primeira vez nascer parece assustador. Há dores e esforço e sangue. E muitos medos. Só quando lhe ganhamos distância e percebemos a naturalidade da coisa é que perdemos o medo. E penso que, apesar de tudo, é uma sorte estar aqui para princípios e não para fins.

Podes vir quando quiseres
Já fui onde tinha de ir
Resolvi os compromissos
Agora só te quero ouvir

As enfermeiras vão entrando e saindo, trocando as barrigas nos sensores, admirando-se com a sintonia perfeita dos dois corações gémeos, falando do almoço e dos filhos e dos colegas e dos turnos. A Eloísa sem agá vai-se embora com um desconsolado Ainda não é desta..., vem a Helena, muito novinha e tímida. Quantas semanas, princesa? Tem aqui umas contracções grandes, se calhar daqui a bocadinho já tem o seu bebé cá fora. Transformamo-nos nisto, em semanas de gestação e linhas de contracções. Eu sinto umas dores levezinhas e penso Até que enfim., e lembro-me dos três centímetros que a médica me avaliou. Vá lá, digo aos miúdos, hoje é um dia bom para nascer, nove do nove e uma chuva miudinha lá fora, sempre gostei destas capicuas e das chuvas de setembro, que se o ditado é válido para os casamentos também se pode aplicar aos nascimentos. Parto molhado, parto abençoado. Quando eu casei havia sol. E quando os dois miúdos maiores nasceram também. Se calhar está a fazer-nos falta na estória um dia de chuva. É o primeiro filho, Helena?, pergunta a enfermeira. E eu penso se os médicos e os enfermeiros e os auxiliares não sentirão a morte a coabitar com eles aqui dentro destas paredes. Se vêm todas as manhãs para o hospital como quem vai para um escritório ou para uma escola. Porque eu (pres)sinto-a. Nos lenços que tapam as ausências de cabelos nas esperas da oncologia, nas macas que se aceleram para as urgências, na placa que diz morgue numa porta igualzinha às outras todas. Será que a enfermeira que me ajeita o sensor na barriga a gracejar É ela, as meninas começam logo na barriga a fazer-se difíceis., e que diz à colega Vai, vai almoçar para a seguir poder ir eu., também sente este frio à espreita ou já se habituou e a morte rotinou-se tanto como uma análise e um teste à urina?

Houve um tempo em que julguei
Que o valor do que fazia
Era tal que se eu parasse
O mundo à volta ruía

A ecografia mostrou-os grandes, tão grandes para gémeos. Ele com dois quilos e oitocentas e mais umas graminhas, ela só com menos cem. Empuzzlados um no outro, arrumadinhos a rentabilizar os espacinhos todos. A médica a ver-se aflita para os destrinçar um do outro Mas onde é que estão as pernas desta rapariga? E onde é que ele enfiou a outra perna? Suspiro todos os dias pelo fim da barriga, que as trinta e sete semanas ultrapassaram em muito o esperado e se os quilos continuam a aumentar-se invalidam-me completamente as já poucas hipóteses de um parto natural. E eu, que consegui fazer nascer dois miúdos maiores que estes a resmungar Não quero oxitocina., Não quero episiotomia., Quero que ele mame já a seguir., Não quero que mo levem., aborreço-me muito com esta cesariana a acenar-me no fim do caminho. Peço-lhes por isso muitas vezes para nascerem. Vá queridos, nasçam, chegou a hora, há tanta gente à vossa espera...

Agora em tudo o que faço
O tempo é tão relativo
Podes vir por um abraço
Podes vir sem ter motivo
Tens em mim o teu espaço

A enfermeira minimiza o som dos corações Isto nem se consegue pensar, parecem uns tambores., e liga um rádio pequenino, um bocadinho roufenho. E de repente começa a música. Que eu já a tinha ouvido por aí, claro, que é muito conhecida. Não o gosto nem desgosto, está naquele campo morno da indiferença. Mas de repente as palavras fazem tanto, tanto sentido. Que os miúdos maiores têm músicas só deles. Não são as músicas de que mais gosto ou as que escolhi para eles. Foram as que se oportunaram na gravidez ou no parto e ficaram as músicas deles. E estranhamente encaixam-se-lhes nos feitios e provavelmente nos destinos. E tenho pensado muitas vezes nestes meses Estes miúdos não têm música nenhuma. À espera que alguma aparecesse. Suspirei de alívio. É esta. É que é mesmo esta. Pronto, agora podem nascer.

Todo o tempo do mundo
para ti tenho todo o tempo do mundo
Todo o tempo do mundo

(Para além das óbvias ausências de tempos corroí-me de indecisões sobre o transcrever ou não para aqui estas palavras que rascunhei na última manhã que gastei no hospital nas esperas da consulta e dos resultados das análises e do cêtêgê. Desagrada-me falcatruar as datas e isto dos blogues é mesmo assim, o que não se regista no momento passa a validade e azeda. Mas depois achei que, ao contrário de muitas outras palavras que têm viajado do caderninho de capa castanha para o caixote do papel, estas eu gostava muito de deixar aqui para os meus filhos mais pequenos. Portanto, cá estão. Desacertadas nas cronologias mas acertadas com os sentimentos.
Os miúdos nasceram no dia a seguir.)

1 comentário:

Paula Sofia Luz disse...

Tinha perdido o link Angela. Que pedaço de história tão maravilhoso para os teus filhos. Que emoção, que alegria! bjs